Um exercício de auto-branqueamento
Terá ao menos Rangel a clareza de retirar o apoio a Manfred Weber, caso este não cesse imediatamente de impor pseudo-linhas vermelhas a Orbán que são sistematicamente violadas sem consequências?
A semana passada Paulo Rangel escreveu uma crónica sobre a “democracia iliberal”, a propósito da Venezuela, referenciando como antecedentes da tendência de autoritarismo e desmantelamento do estado de direito o líder russo Putin e o turco Erdogan. Adivinhem quem não era mencionado uma única vez sequer? Viktor Orbán da Hungria, nem mais nem menos do que o inventor da expressão “democracia iliberal” e orgulhoso precursor do movimento.
Mas esta semana Paulo Rangel dedica toda uma crónica a uma "Declaração para memória passada, presente e futura” a explicar como assumiu sempre, “sem tibieza”, posições críticas de Viktor Orbán.
O que aconteceu entre uma crónica e outra? Um grupo de partidos escandinavos e do Benelux iniciou procedimentos para votar a expulsão do Fidesz de Orbán do Partido Popular Europeu de que PSD e CDS fazem parte, o calendário faz com que essa possível expulsão tenha de ser debatida a 20 deste mês, até o CDS ultrapassou o PSD juntando-se ao grupo de partidos que pedem a expulsão de Orbán, e a aproximação das eleições europeias aconselha a que tudo seja resolvido rapidamente, aumentando fortemente a possibilidade de que o PPE se desfaça de Orbán a dois meses de ir a votos — mas quase uma década depois de ele ter começado a destruir o Estado de Direito húngaro. São estes acontecimentos que se interpõem entre uma crónica em que Rangel faz uma genealogia da “democracia iliberal” dela omitindo extraordinariamente Orbán e outra em que alegadamente documenta uma oposição de sempre a Orbán.
Digo alegadamente, porque mesmo esse exercício é lacunar e parcial. Rangel cita como primeira referência da sua oposição a Orbán uma crónica de 2015 — cinco anos depois de Orbán ter começado a governar, e quando já tinha alterado a constituição do seu país cinco vezes, decapitado o sistema judicial e reescrito a lei eleitoral, com Rangel convivendo com todos estes factos enquanto partilhava a vice-presidência do PPE com o autor confesso dessas desmandas constitucionais, Jószef Szájer, e a delegação parlamentar do PSD com um eurodeputado português, Mário David, que tem extensas cumplicidades com Viktor Orbán, sem nunca ter questionado ou rejeitado institucionalmente tais vínculos. Mas abre-se a citada coluna e que se vê? Uma crónica que revela preocupação… com a esquerdização do PS (“Estou seriamente preocupado com a apropriação do PS pela extrema-esquerda. Não augura nada de bom”) e com a direitização da Polónia, onde um partido de outro grupo parlamentar acabara de substituir um partido do PPE no governo, centrando-se a referência à "orbanização” a uma identificação da “admiração nutrida pelo carisma de Viktor Orbán e pela aproximação nacionalista dos restantes países do grupo de Visegrado”.
Prosseguir na dissecação desta e de outras crónicas de Rangel sobre o tema acrescentaria pouco ao que aqui escrevi há umas semanas. Rangel criticou, lamentou e condenou retoricamente Orbán? Sim, geralmente pouco, limitadamente, tarde, e relativizando-o entre outros maus exemplos (pretensamente igualmente graves) distribuídos por outros grupos e partidos pan-europeus. Cumpriu com os mínimos olímpicos como talvez qualquer outro político e comentador inteligente, como Rangel é, teria feito. Só que muitos outros políticos do PPE foram mais longe, de forma muito mais clara e, sobretudo, mais arriscada para as suas carreiras políticas: o luxemburguês Frank Engel, meu relator-sombra no relatório que redigi sobre o caso húngaro em 2012-13, pede há anos a expulsão de Orbán, como o faz a sueca Annamaria Corrazza-Bildt. Em Portugal e no PSD, Carlos Coelho foi um seríssimo opositor de Orbán e ajudou o meu relatório a ser aprovado, como fiz sempre questão de dizer publicamente, e o comissário Carlos Moedas fez várias declarações públicas contra Orbán que estão a anos-luz das de Rangel. Esta não é, pois, uma questão de sectarismo partidário (nem pré-eleitoral, o que me leva à seguinte declaração de interesses: as primárias do Livre escolheram-me para encabeçar a lista do partido às europeias, mas façam-me a justiça de reconhecer que escrevo sobre a deriva em curso na Hungria desde que ela começou, que foi no Verão de 2010).
Esta é uma questão fundamental porque o Governo de Orbán não foi dentro da UE um governo como os outros. Como o próprio Orbán reconhece e se gaba, ele foi o precursor e protagonista central de um movimento, e esse movimento constituiu o maior ataque ao Estado de Direito, aos valores democráticos e aos direitos fundamentais na União Europeia desde a sua fundação. Não sou eu que o digo. Com Orbán realizaram-se pela primeira vez num país da UE eleições "não justas”, como determinou a OSCE. Com Orbán pela primeira vez um país da UE foi considerado “não livre” pela Freedom House. Com Orbán foram violadas as Convenções de Genebra sobre refugiados; reintroduzidos trabalhos forçados para presidiários; iniciadas sistemáticas campanhas de propaganda tingidas de anti-semitismo, xenofobia e islamofobia; encerrados ou silenciados vários órgãos de comunicação social; criminalizados os sem-abrigo; limitadas constitucionalmente as liberdade de expressão, associação e religiosa; forçada a sair do país a maior universidade independente; limitadas as agências independentes; perseguidas fiscalmente as ONG — e os exemplos de outros desmandos encheriam o jornal inteiro. E durante todo este tempo Rangel não foi um comentador exterior que não tivesse outro remédio senão lamentar: foi um vice-presidente do mesmo partido de Orbán, título que partilhou com um braço-direito de Orbán, apoiando à presidência da Comissão Europeia o mesmo candidato de Orbán, e só há poucas semanas dizendo que preferia que Orbán saísse pelo seu pé. Enquanto isso, o projeto europeu que estava sob ataque, estava-o sobretudo a partir da sua bancada e do seu partido, de onde nunca quis retirar o PSD, e de onde nunca exigiu a expulsão do Orbán.
Por isso, lamento, mas não. Rangel não tem direito a reescrever a história. O que se passou e as consequências que teve foi demasiado grave para o destino do projeto europeu. A crise da UE passa sobretudo por aqui.
Será ao menos que “mais vale tarde do que nunca”? Esperemos que sim. Mas uma entrevista ao jornal Bild de Manfred Weber, que é ainda o candidato de Rangel e Orbán à Comissão Europeia, apresenta a Orbán novas condições para “ficar no PPE”: um pedido de desculpas aos partidos do PPE, o fim das campanhas de publicidade anti-Bruxelas do Governo húngaro e a manutenção no país da Universidade da Europa Central que já teve de sair da Hungria. Parece que é antes um caso de “demasiado pouco, demasiado tarde”. Terá ao menos Rangel a clareza de retirar o apoio a Manfred Weber caso este não cesse imediatamente de impor pseudo-linhas vermelhas a Orbán que são sistematicamente violadas sem consequências? Saiamos por uma vez da conversa vaga. Que quem tem responsabilidades políticas assuma responsabilidades políticas.