As emoções de uma máscara de silicone, gelatina e cola
Para a sueca Eva Melander a questão foi como exprimir, para além do silicone e da gelatina, as emoções da sua personagem em Na Fronteira: Tina, criatura sufocada pelo sentimento de não pertença, troll do folclore nórdico tolerada pelos humanos.
Depois de se sujeitar a quatro horas de aplicação de silicone, gelatina e cola no rosto, ritual de todas as madrugadas antes das dez horas diárias de rodagem de Na Fronteira (estreia esta semana) e depois de aprender a mecânica do comportamento desses (falsos) músculos, as dificuldades da actriz sueca Eva Melander em exprimir-se para além da máscara que a escondia como uma fortaleza rimavam com as dificuldades emocionais da sua personagem.
“Tina não sabe quem é, está a tentar saber e tudo o que faz parece sempre estar errado. O seu corpo não funciona no carro, na casa, nos sapatos, nas calças que veste” — Eva teve de engordar 18 quilos, seguindo um programa de exercício e de dieta que a obrigava a comer a cada 90 minutos.
“Ganhar mais 18 quilos foi uma forma de construir uma personagem que era mais animal do que humana”. Tina fareja como um cão — por isso ajuda a polícia nas fronteiras a detectar ilícitos nas bagagens, o que vai ser determinante para o desmantelamento de uma rede de pedofilia. O seu corpo — os pêlos, o peso, os dentes protuberantes– é o resultado (julga ela) de uma desordem de cromossomas.
“Ali [Abassi, o realizador] andou à procura de pessoas que se parecessem com as personagens que imaginara. Procurou durante ano e meio e não encontrou. Ficou comigo e com o Eero [Milonoff]. Mas nós só poderíamos fazer este trabalho se nos transformássemos”.
Eero, actor finlandês, interpreta Vero, igual a Tina mas ao contrário dela bem consciente da sua condição. Por isso inocula nela, que sempre se resignou à condição de tolerada, o desejo de vingança do outcast. Incita-a, ela que afinal é criatura do mundo das fábulas, um troll como ele, a iniciar o seu turbulento despertar, a luta contra os humanos.
“É claro que Tina enterrou os seus sentimentos dentro dela. Está tolhida nos seus desejos, está tudo enterrado nela de forma profunda. E não se pode permitir grandes exteriorizações — se se rir, as pessoas vão-se assustar com os seus dentes. Era, portanto, um desafio interpretar as emoções de uma personagem através desta máscara, uma personagem que não se pode permitir grandes expressividades.”
Não era óbvio. Por isso Eva investigava todos os dias o material rodado para se assegurar junto do realizador de que a coisa estava a funcionar. Não era óbvio, mas funciona. Ficou nas personagens e no filme algo da intenção inicial de Ali Abassi, realizador de origem iraniana que vive em Copenhaga, de trabalhar com pessoas cujo aspecto exterior as colocava fora do cânone para assim prescindir da utilização de próteses. Na Fronteira estabelece, por assim dizer, um pacto naturalista com os seres e com os acontecimentos, mesmo se as personagens aparecem, via conto de John Ajvide Lindqvist, das fábulas escandinavas. Na Fronteira mantém-se próximo de uma experiência íntima, física do mundo: é com o desconforto dos corpos de Tina e de Vore, com a sua respiração e os seus ruídos, que o espectador também acede ao filme.
“Isso soa-me bem”, brinca Eva, 43 anos, há 15 no reino do teatro, da televisão e do cinema. “Senti que emprestei o meu corpo a uma personagem durante o tempo de rodagem. E quando tive de perder peso” — por exemplo, quando, depois do filme, enfrentou os ensaios do exigente papel principal, exigente e transformista por causa do texto e do cenário, da produção do Uppsala City Theater do Ricardo III de Shakespeare — “continuei a ter de lidar com esse corpo. Não era um novo eu. Eu existia menos na rodagem. Quem estava mais presente na minha vida era a personagem. Mas houve coisas engraçadas que pude experimentar na minha vida normal pelo facto de estar maior e mais forte: por exemplo quando andava pelos bosques ou quando por qualquer razão tinha que dar um encontrão em alguém [risos].”
“A narrativa de Tina”, continua Eva, “é que ela está completamente na ignorância de quem é. Está a tentar integrar-se, vendo-se como um ser humano com uma desordem de cromossomas. Está a tentar lidar com a vida. Tem namorado, mas não sabe o que é o amor. Não sabe o que é ser amada. E conhece um tipo, Vore, que a ajuda a perceber quem ela é. Entra em contacto consigo mesma e experimenta o amor pela primeira vez. E tem de fazer uma escolha porque este tipo não tem o sentido de moral com que ela é capaz de viver. Tem de tomar decisões: ‘Vou ser quem? Vou gostar de quem?’ Já Vore está consciente de quem é. É um troll, e sabe-o. A sua narrativa é vingar-se dos humanos, que o trataram tão mal”.
Uma cena de sexo vai revelar a Tina a sua condição: quando da sua vagina sai um pénis (e então a Eva e Eero apareceu uma cena de sexo não tão igual a outras cenas de sexo dos filmes pela mecânica que tiveram de enfrentar; mas nela adivinha-se um outro participante, o humor, algo que Eva diz ser essencial na sua abordagem às personagens, por mais traumática que seja a experiência do mundo).
“Obviamente não foi uma cena de sexo igual a outra cena de sexo. Mas interpretar já é pensar que se tem um pénis mesmo não tendo um pénis. O meu trabalho é fazer com que as pessoas acreditem em tudo. Entre as takes eu e Eero ríamo-nos: ‘uau, isto é um dia diferente de trabalho. imagine-se sermos pagos para isto’ [risos]. Mas durante a cena tentámos várias formas de exprimir o sexo e a paixão. Já imaginou o que é perceber que se tem um pénis em vez de uma vagina ou uma vagina em vez de um pénis? Tina não sabe o que fazer ou dizer, mas ao mesmo tempo tem, com o sexo, o instinto de ser ela a tomar posse. Sim, tentámos várias formas, algo mais animal ou algo mais íntimo. Não me senti embaraçada. Sim, foi over the top. Mas é esse o coração da história: saber quem se é”.
Para Eva Melander, “obcecada” pelo acto de interpretar, a questão é: como fazer o espectador ouvir o que um actor tem para dizer? “Sempre gostei de experimentar com as personagens. Que outra maneira há de acrescentar coisas à história? Não trabalho de forma diferente se faço uma pessoa ‘doida’ ou uma pessoa ‘normal’, ou o que se quiser chamar. Estou habituada a colocar no palco ou no ecrã personagens que estabelecem um desafio ao espectador. O que me interessa é pensar no que me pode fazer comunicar com o espectador. Quão longe posso ir e levar o espectador comigo? As personagens de Tina e de Ricardo III são dois extremos daquilo que faço”. No meio pode estar a suposta normalidade em que a estranheza queima a lume brando. “O que quer que faça, louco ou normal — mas quem é que diz o que é o quê..? —, trabalho da mesma maneira”.
Por estes dias, filma no Norte da Suécia a segunda temporada de uma série televisiva em que interpreta uma inspectora da polícia, “divertida, que manda nos seus homens”, que tem quatro filhos e vive na aldeia. Podia ser a Frances McDormand de Fargo, comparação que lhe agrada: é uma actriz favorita. “Comparada com Ricardo III esta inspectora é uma pessoa normal. Tina é mais louca. Já Ricardo III é louco. Tina tem um coração tão doce”... Eva enternece-se: “Esforça-se tanto para saber o que está certo ou errado neste mundo, para saber o que é que ela é e o que é que ela poderá ser...”