Futebol, o rei do desporto federado continua a crescer
Os números das últimas décadas traduzem um aumento sustentado do total de praticantes. No que respeita ao peso do futebol, que até se esbateu ligeiramente face aos anos 90, Portugal está alinhado com outros países europeus. Especialistas falam na influência dos “heróis” e no circuito do dinheiro.
É um cliché como qualquer outro, mas continua tão actual como sempre: Portugal é um país de futebol. Sim, Portugal é um país no qual o futebol tem um peso esmagador, e não apenas no panorama desportivo, mas essa é mais regra do que excepção também em muitas outras latitudes. Nos dias que correm, contam-se mais praticantes de desporto federado do que nunca e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) é o apogeu dessa tendência, num percurso de crescimento sustentado. Há, porém, um dado a ter em conta neste retrato: a proporção do desporto-rei no mosaico nacional é hoje menor do que há duas décadas.
O PÚBLICO passou a pente fino os números de atletas inscritos nas principais federações desportivas nacionais desde 1996 até 2017 (os dados mais recentes disponíveis) e verificou que o futebol trilhou um percurso quase sempre ascendente - a única excepção foi o ano de 2013, que assistiu a uma quebra residual, de 68 inscritos. É, de resto, a modalidade com um aumento de procura mais estável, atingindo há pouco mais de um ano os 144.256 praticantes, num universo de 176.349 que abarca também, sob a alçada da FPF, variantes como o futebol de praia e o futsal.
É certo que, neste período, há outras modalidades com saltos significativos (e nalguns casos mais expressivos até, como a natação, o ciclismo ou o voleibol), mas que partem de uma base muito mais modesta. O futebol, de resto, atingiu o seu pico em 2017, tal como a natação, a segunda modalidade com mais atletas federados (65.499), mas a diferença entre ambos é gigantesca. O pódio fica completo com o andebol (49.812), que, tal como o basquetebol e o voleibol, se mantém abaixo do limiar dos 50.000 inscritos.
Carlos Paula Cardoso, presidente da Confederação do Desporto de Portugal, avança uma pista de leitura para uma tendência que identifica também noutros sectores, em diferentes momentos da história. “Nós precisamos de heróis e actualmente temos um herói que é Cristiano Ronaldo. Há necessidade de haver heróis, porque é o foco que incide sobre eles que contribui para captar mais gente para a respectiva modalidade”, avalia, em declarações ao PÚBLICO.
Nesta caminhada do futebol até ao trono, o dirigente aponta a conquista do Mundial de sub-20, em Riade (1989) e em Lisboa (1991) – e o impulso assegurado por essa geração de ouro –, bem como a organização do Europeu de 2004 como momentos-chave para reforçar uma popularidade que é inegável. E para sustentar esta ideia de um rosto/bandeira, de um nome tão grande que reboca as massas, Carlos Paula Cardoso recorda o impacto que Vanessa Fernandes teve no crescimento do triatlo, que Carlos Lopes ou Rosa Mota tiveram no atletismo ou que Fernando Pimenta tem actualmente na canoagem. “Os altos e baixos nas modalidades acabam por ser normais”, assume, notando que o futebol soube aproveitar o seu momentum, ao nível da formação e das infra-estruturas, e entrou sustentadamente “em velocidade de cruzeiro”.
Contas feitas, os praticantes inscritos na FPF representam 28,3% do total de atletas federados, sensivelmente o mesmo valor que há 10 anos (28,2%), mas francamente menos do que há duas décadas (35,8%). O crescimento da oferta, em termos de disciplinas desportivas, ajudará a explicar uma maior disseminação dos praticantes, até porque as condições logísticas nunca foram tão atractivas, mas a fatia de leão continua a pertencer a uma modalidade que dispõe de um trunfo com o qual nenhuma outra, em Portugal, consegue competir.
“A grande diferença face aos outros desportos tem a ver com o dinheiro, porque não se investe uma fortuna nas outras modalidades. Os jogadores são vistos como investimentos, são vistos como tendo um cifrão colado à pele, no meio de uma máquina que alimenta muita gente. É uma situação que não pode ser invertida no curto prazo, porque só seria possível através da educação, que é responsabilidade da família, dos agentes desportivos, dos educadores formais e muito poucos são os que se preocupam com isso”, contextualiza, em conversa com o PÚBLICO, Alberto Trovão do Rosário, autor da obra O Desporto em Portugal: reflexo e projecto de uma cultura.
Este fenómeno, porém, está muito longe de ser uma peculiaridade portuguesa. Em Espanha, os 1.027.907 futebolistas federados registados em 2017 representavam 26,3% do total de praticantes no país (seguia-se o basquetebol, com 354.0328, e depois a caça), enquanto em Itália eram 1.056.824, que se traduziam em 23,8% do total (depois vinham o ténis, com 372.964, e o voleibol). Em França, essa representação era ligeiramente inferior (2.135.193, 19,7% do total), mas, curiosamente, na Alemanha os números revelavam-se ainda mais impressionantes: o futebol federado concentrava 31% dos atletas do país (7.043.964 inscritos).
“O futebol serve para a catarse de uma sociedade, muito mais do que qualquer outra modalidade. Vão-se criando novos modelos, porque a sociedade está a andar cada vez mais depressa, e o futebol tem sido capaz de acompanhar essa mudança brusca”, acrescenta Trovão do Rosário, doutorado pela Universidade Técnica de Lisboa e um estudioso também com experiência como professor universitário.
Com uma engrenagem desta envergadura em andamento, os clubes, os principais impulsionadores do fenómeno, acabam por alocar poucos recursos a uma aposta mais sustentada noutras disciplinas. E como o retorno financeiro nas restantes modalidades colectivas, inclusive ao nível das competições europeias, é pouco mais do que residual, torna-se difícil garantir a autonomia de projectos mais competitivos, especialmente num mercado tão pequeno quando se trata de procurar patrocinadores.
De resto, defende Trovão do Rosário, a própria lógica do desporto escolar, uma via privilegiada de contacto com diferentes contextos e realidades desportivas, é muitas vezes subvertida por pressão dos alunos (e não só), que torcem o nariz a novas experiências e “forçam” a prática do futebol. “A escolha do futebol pelas crianças é muito potenciada pelos pais, que tantas vezes vêem nelas um investimento paralelo. Esta não é uma visão negra, é a realidade que temos”, reprova.
Apesar dos entraves, e desse outro obstáculo estrutural que é o envelhecimento demográfico, o que os dados mostram é um aumento de 352.531 praticantes desportivos desde 1997, uma subida de aproximadamente 130% num país que, nestas duas décadas, estabilizou a população nos 10,3 milhões de habitantes.
“Há um crescimento sustentado, sim, mas quando se fala da importância da prática desportiva, podia pensar-se num crescimento quase exponencial”, avalia Carlos Paula Cardoso, remetendo para os obstáculos que o desporto federado hoje enfrenta. “Além da concorrência feroz da tecnologia, há uma quantidade enorme de oferta fora do movimento associativo, como os ginásios e clubes de fitness, e há também uma quase necessidade de as novas gerações, num acto de rebeldia, optarem por modalidades não tradicionais”.