Greve dos enfermeiros: demasiadas vozes?
Urge que seja mobilizada competência, responsabilidade e serenidade política e sindical para, pela (re)negociação, pôr fim, sustentado, a este conflito.
“A greve, no fundo, é a voz dos que não são ouvidos”
Martin Luther King
Esta frase, de uma eminente referência social e política, com pelo menos meio século, continua actual. No entanto, quanto à greve dos enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS), quase não se ouvindo falar de outra coisa no espaço mediático e político, até parece ter havido dela uma certa desactualização, face a tanta “vozearia”.
De tal modo que, mesmo alguém que, por formação e por profissão, não fica alheio a qualquer questão que ao Trabalho diga respeito, se (auto)inibiu, até agora, de contribuir para a “vozearia”. Contudo, entende agora ser tempo de assumir, enquadrando-o minimamente, o que, neste conflito, sempre encarou como preocupação essencial dois riscos que, com maior ou menor permanência, dele poderiam restar: a perda de ancoragem social da profissão de enfermagem e a fragilização do direito à greve.
De facto, a forma e duração desta greve gerou grande controvérsia social e, mesmo, não se pode escamotear, significativa hostilidade social aos enfermeiros. Por outro lado, à “boleia” da controvérsia sobre esta greve, tendo-a como pretexto, logo surgiram (velhas) “vozes” a questionar o direito à greve tal como está instituído, colocando a hipótese do seu condicionamento, da sua restrição [1] [2]. Ou, mesmo, pelo menos na administração pública, da sua eliminação [3]. Sinais de que a controvérsia, crispação e, mesmo, hostilidade social aos enfermeiros associadas a esta greve já estão a ser “cavalgadas” por quem clama pela eliminação do direito à greve ou, pelo menos, a sua restrição nos serviços públicos.
Aliás, pelo que ela, objectivamente, contém como potencial indutora de inibição, pelo menos ao nível do exercício concreto do direito à greve, essa é também a leitura (que, ainda que se diga “subjectiva”, pode ter impactor objectivo) que pode ser feita da recente declaração do Presidente da Republica após o conhecimento do inerente parecer da PGR e decisão do STA: “Os sindicatos devem ter preocupação acrescida quanto à definição da greve”.
Estes são os aspectos que este texto mais visa e não, propriamente, a controvérsia jurídica em que a greve esteve e parece que (ainda) continua a estar envolvida. Porquê o desencadeamento desta crispação e, mesmo, hostilidade social aos enfermeiros?
Alheando-nos aqui de especificações sobre a justiça das reivindicações dos enfermeiros que estão essencialmente na base desta greve, sendo objectivo, é de perguntar como é que os enfermeiros não hão-de ter inculcado a convicção de que as suas reivindicações são justas relativamente à sua “competência técnica, científica e humana” [4] se, por um lado, ainda não há muito tempo, o próprio Governo (concretamente, o ministro da Saúde) o reconheceu publicamente [5] e, mais, a própria OCDE vem agora dizer que os “enfermeiros portugueses estão entre os mais mal pagos da OCDE” [6]?
Por outro lado, os enfermeiros e as enfermeiras exercem uma profissão à qual tem sido reconhecido prestígio e cujo exercício se caracteriza por grande proximidade humana, gerando por regra, quer como profissionais quer como pessoas, gratidão e simpatia por parte de quem, com dificuldades de saúde, com eles e elas contacta. Aliás, a história e a literatura contêm vários exemplos que destacam a vertente humana e social, mais até do que técnica, desta profissão.
E, contudo, em geral, nesta greve faltou-lhes ancoragem social e, mesmo, desencadeou-se-lhes significativa hostilidade social. Daí que, talvez interesse reflectir os dois principais factores que, nesta greve, se julga terem contribuído para isso.
O que se tenta fazer sem qualquer intenção pseudomoralista e com o distanciamento e objectividade possíveis de quem, enquanto trabalhador (da função pública) e enquanto cidadão, tem, como sempre teve, por suas (inclusive como praticadas) as referências adiante expressas quanto ao direito à greve e ao seu exercício.
1. “Greve cirúrgica”.
As reivindicações (salariais, de carreira e de antecipação da idade da reforma), via sindicatos que desencadearam esta greve, dizem respeito a todos os enfermeiros, independentemente dos serviços em que, no SNS, exercem funções. Apesar disso, o exercício efectivo da greve incidiu “só” nos blocos operatórios.
Ora, este serviço é aquele onde, em princípio, pode ser maior o impacto constrangedor da greve nos doentes e familiares que têm de recorrer a esse serviço. Não apenas pelo eventual sofrimento efectivo em que estejam mas, mesmo, pela preocupação pelo atraso que, a partir da greve, projectam na resposta de cuidados de cirurgia necessários à sua condição.
Isso, tendo em conta a especulação mediática que de tal foi feita, é óbvio que induziu nos doentes, nos seus familiares e na sociedade em geral a ideia de que a greve visou ter um impacto selectivo de maior (e não de menor) prejuízo para os utentes do SNS. Ideia que se foi agravando com o seu prolongamento e com a especulação mediática (ainda por cima com números divulgados por sindicalistas) sobre milhares de cirurgias adiadas “por causa da greve”, sugerindo a perversidade de os sindicatos e os enfermeiros terem por medida do “sucesso” da greve o número de cirurgias adiadas.
E se bem que muitos outros sectores (empresas ou administração pública) há onde se verificaram greves apenas em determinados sectores da organização patronal, não haveria outro sector em que o apodo de “greve cirúrgica”, tivesse um sentido tão literal como esta greve dos enfermeiros (só) nos blocos operatórios.
2. Recurso ao crowdfunding
O recurso ao crowdfunding (inédito em greves ocorridas até agora) para apoiar financeiramente os enfermeiros efectivamente “grevistas” (substituir os salários perdidos dos trabalhadores que, em greve, não trabalharam), para além de suscitar questões relacionadas com exigências e restrições regulamentares desta actividade [7], deu azo, tanto mais que tal processo não foi directamente assumido e gerido pelos sindicatos mas através de um “movimento” de enfermeiros que para isso se organizou, a serem lançadas suspeitas (que, também muito mediaticamente especuladas, ainda não foram totalmente esclarecidas) de que as contribuições para o crowdfunding não foram só de enfermeiros (efectivamente grevistas ou não) mas também de outras pessoas ou entidades. Provavelmente, virá a concluir-se que essas suspeitas eram infundadas, existindo já autoridades a investigar nesse sentido [8].
De qualquer modo, sem esse esclarecimento inequívoco, tal inédito recurso ao financiamento de greves, para além de ser pretexto de especulação sobre inerenteilegalidade [9], suscita a questão da “subcontratação” (por parte de que eventuais interesses, poderá continuar a ser especulada esta pergunta) da greve. Ou seja, de algum modo, a questão da sua “mercantilização”.
Convenha-se que, neste contexto, pelo menos do ponto de vista teórico, a questão é pertinente, porque a greve é indissociável do trabalho e, porque se consubstancia nas pessoas que o realizam, “o trabalho não é uma mercadoria” [10]. Logo, também a greve, até porque é um instrumento de dignificação do trabalho,não o pode, de algum modo, ser. Ou, sequer, parecer que o seja.
Há ainda um outro aspecto que, não obstante nada haja de concreto que o torne pertinente nesta greve, suscita, deve suscitar reflexão prospectiva (e, tanto quanto possível, proactiva).
É que, independentemente da óptica (de aceitação ou de crítica) ética, moral ou legal (pelo menos do ponto vista doutrinário, a nível administrativo, com o recente Parecer da Procuradoria-Geral da República [11]) com que se foque o recurso ao crowdfunding para apoiar financeiramente grevistas, esta forma de utilização das “novas tecnologias” como (eventual) exemplo do paradigma da sua influência sobre o “trabalho do futuro” coloca a questão da possível “gestão” patronal dessas novas tecnologias: para melhorarem as condições de trabalho, de dignidade, de menor esforço e penosidade do / no trabalho humano? Ou só para visarem a diminuição de “custos” do trabalho humano fomentando o desemprego e, ao mesmo tempo, paradoxalmente (ou talvez não...), para fomentarem, “apoiando-as” financeiramente de forma camuflada com o recurso a crowdfundings, (convenientes) greves em seus concorrentes de mercado?
Para além disto, o que é certo é que a controvérsia e mesmo hostilidade social gerada pela forma de greve, pela sua duração e pelo sector (SNS) onde se verificou, houve também, reconheça-se, declarações públicas (“vozes”) de responsáveis governativos, sindicais e de ordens profissionais que acentuaram a crispação. Acresce, ainda, a induzida pela controvérsia jurídica [12] que, no actual quadro normativo da greve (ou inerente à greve, como é caso da requisição civil), os tribunais, com certeza, definitivamente esclarecerão. O que não tem a ver com o direito à greve tal como está instituído, não obstante se convenha que, pelo que já se referiu, esta greve se desviou do tipo tradicional de greves.
A greve e o seu exercício é um direito cuja história merece um enorme respeito. Porque, sendo indispensável à democracia, muita gente já morreu pelo direito à greve e pelo seu exercício. E daí, em Portugal, estar consagrado desde 1974 [13] o direito à greve e o seu exercício, que, agora, constitucionalmente [14], é um “direito fundamental”.
Mais concretamente, a greve e o seu exercício é indissociável do trabalho, do direito ao trabalho e do trabalho com direitos. E daí, em princípio, factor da melhoria, efectiva ou potencial, das condições de trabalho, logo, da dignificação do trabalho. Depois, algo que muitas vezes é esquecido é a de que uma greve, qualquer greve, nunca é feita de ânimo leve. Não apenas porque implica o respectivo corte na remuneração correspondente aos dias de greve mas também porque é pressuposto ter consequências de desgaste (objectivo e subjectivo), quer a nível pessoal, quer profissional, quer social.
Daí, partir-se do princípio de que os trabalhadores que se envolvem numa greve só o fazem em último recurso, como forma de se fazerem “ouvir” por melhores condições de trabalho (e, daí de vida) e, mesmo, em geral, pela melhoria da organização, meios e funcionamento dos serviços onde a profissão é exercida.
Pelo que o que deste conflito não deve ser degeneração é o aproveitamento desta controvérsia e mesmo hostilidade social a esta greve para se pôr em causa, por um lado, a dignidade da profissão de enfermagem e, por outro, tal como está instituído, de algum modo, o direito à greve ou o seu exercício. Seja no sector privado, seja na administração pública. Isso seria retroceder social e politicamente ao regime de Salazar, a muito antes do Vinte e Cinco de Abril, ao Estatuto do Trabalho Nacional de 1933 [15].
De qualquer modo, o que é certo é que, na situação actual, com este contexto histórico da greve como fundo, se não houver (maior) progresso na aproximação das posições em conflito, os procedimentos jurídicos (ainda?) em curso, por si, provavelmente, só servirão para o crispar ainda mais. A manter-se tal crispação, há o risco de estarem em causa importantes objectivos políticos do Governo (pelo menos) em matéria de Saúde.
E há também o risco de estarem em causa os interesses dos enfermeiros, não só melhoria das suas condições de trabalho e profissionais mas também, talvez até mais importante, a reposição do apoio, da ancoragem social à sua profissão perdido neste conflito, especialmente com a greve.
E, sobretudo, com o SNS com as dificuldades que se lhe conhecem, a ser (mais) fragilizado com a manutenção deste conflito, há o risco de estar em causa o interesse público, ou seja, por minimamente que seja, a essência da missão do SNS: a qualidade, prontidão e segurança dos cuidados de saúde a prestar aos portugueses.
Urge que seja mobilizada competência, responsabilidade e serenidade política e sindical para, pela (re)negociação, pôr fim, sustentado, a este conflito.
Enfim, pela crispação a que chegou, este conflito, apesar da definição de Martin Luther King, o que lhe não têm faltado é “vozes”, se bem que muitas inconsequentes (se não contraproducentes) na sua resolução. Tendo em conta os direitos em presença e o interesse público em causa, é premente que as “vozes” nele mais directamente responsáveis, Governo e sindicatos, sejam mais consequentes na prevenção dos referidos riscos, visando a sua definitiva resolução.
Relativamente ao direito à greve tal como está instituído, legislado, a essência substantiva, concreta, desta e doutras greves decorre da realidade em que se inserem e não da lei que enquadra essa realidade. Por mais que haja “vozes” a, mal, clamar pelo contrário.
[1] “Carne para canhão” – Vital Moreira – Dinheiro vivo (9/2/2019), https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/carne-para-canhao/
[2] “Para quando a regulamentação da greve?” – António Saraiva (presidente da CIP) – Dinheiro vivo (9/2/2019) - https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/para-quando-a-regulamentacao-da-greve/
[3] “Os funcionários públicos devem poder fazer greve?” – João Miguel Tavares – PÚBLICO (8/12/2018) - https://www.publico.pt/2018/12/08/politica/opiniao/funcionarios-publicos-greve-1853919#gs.LcbjEXcY
[4] Citando a ministra da Saúde (Expresso – 1.º caderno, 9/2/2019)
[5] “As reivindicações dos Enfermeiros são justas” (ministro da Saúde, 12/10/2018 – RTP1 - https://www.rtp.pt/noticias/economia/ministro-da-saude-considera-reivindicacoes-dos-enfermeiros-justas_v1104429)
[6] “Enfermeiros portugueses entre os mais mal pagos da OCDE” – Expresso, 18/2/2019 - https://expresso.pt/revista-de-imprensa/2019-02-18-Enfermeiros-portugueses-entre-os-mais-mal-pagos-da-OCDE#gs.Xfj9ZTha
[7] Existe legislação neste âmbito, nomeadamente, a Lei 102/2015, de 24/8, que “define o regime jurídico do financiamento colaborativo”, cuja aplicabilidade nesta greve não se pretende aqui reflectir se admissível, se discutível.
[8] “ASAE vai investigar financiamento da greve dos enfermeiros” – PÚBLICO (9/2/2019) - https://www.publico.pt/2019/02/09/sociedade/noticia/asae-vai-investigar-financiamento-greve-enfermeiros-1861349#gs.KmDFl6IR
[9] N.º 1 do art.º 531.º, conjugado com o N.º 1 e N.º 2 do Art.º 405.º, do Código do Trabalho.
[10] Primeiro princípio fundamental da actual versão da Constituição da OIT, a partir da “Declaração de Filadélfia “ (10/5/1944)
[11] Parecer da PGR Nº 6/2019, homologado pelo despacho do primeiro-ministro – N.º 1741-A/2019, de 18/2/2019
[12] Um dos sindicatos promotores da greve (Sindepor) contesta a recente decisão do Supremo Tribunal Administrativo sobre o seu pedido de “intimação” ao Governo quanto à requisição civil dos enfermeiros – nota informativa do STA de 26/2/2019 - https://www.stadministrativo.pt/comunicacoes/noticias/
[13] Decreto-Lei N.º 392/74, de 27 de Agosto
[14] Artigo 57.º e (especialmente) Artigo 18.º da CRP, com expressão mais substantiva nos Artigos 530.º e seguintes do Código do Trabalho
[15] “A suspensão concertada de serviços públicos ou de interesse colectivo importará a demissão dos delinquentes, além de outras responsabilidades que a lei prescrever” (Art.º 37.º do Estatuto do Trabalho Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 23048, de 23/9/1933).