Costa poderá beneficiar com as greves
A forma absurdamente egoísta e intransigente como professores e enfermeiros conduziram as suas lutas esbarra com o quotidiano do país.
Como o PÚBLICO noticiava na quinta-feira, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, irá promulgar o decreto-lei sobre descongelamento da carreira dos professores em dois anos, nove meses e 18 dias, que o Governo aprovará quando terminar a ronda de negociações com os sindicatos, à qual ficou obrigado por uma norma inscrita no Orçamento do Estado para 2019 pelo voto do PSD, PCP e BE.
O Presidente assumiu que não irá repetir o gesto de vetar o decreto-lei do Governo, como fez a 26 de Dezembro com a primeira versão que previa descongelar parcialmente a carreira dos professores. O veto reabriu um clima de contestação sindical ao executivo, com ameaças de novas greves para conseguirem, mesmo que de forma faseada, a reposição integral do tempo de serviço congelado num total de quase dez anos.
Marcelo Rebelo de Sousa mostrou bom senso e esvaziou uma “guerra” sindical. Mas, ao fazê-lo, o Presidente reconheceu também a razão do Governo. É um facto cristalino que os recursos orçamentais do país são limitados e que as lutas sindicais não podem ter como objectivo conquistar actualizações de carreira e aumentos salariais que não correspondam às disponibilidades financeiras do Estado.
É por o Governo ter razão que o Presidente cede agora, depois de ter sentido necessidade de vetar o decreto-lei para contemplar uma negociação inscrita no Orçamento do Estado de 2019 por uma manobra politiqueira e demagógica do PSD, PCP e BE. Agora, já se percebeu que na Assembleia da República o PSD não voltará a embarcar em novos tacticismos eleitoralistas, como deixou claro o vice-presidente do partido, David Justino, que já foi, aliás, ministro da Educação (2002-2004) com Durão Barroso – ou seja, a luta sindical dos professores prepara-se para ser um não-assunto político-institucional.
A vitória do Governo nesta questão resulta da posição de força que assumiu frente à exigência sindical. O executivo nunca hesitou, embora de início se tenha limitado a argumentar com a incapacidade financeira do Estado de satisfazer todas as recomendações sindicais e não tenha aduzido o facto de que o reconhecimento da exigência dos professores seria injusto, porque um exclusivo desta profissão, não extensível a outras categorias de funcionários públicos cujas carreiras foram igualmente congeladas durante cerca de uma década. Mais: num momento, em que os indicadores económicos são preocupantes e a economia corre o risco de entrar em recessão, falar em aumento da despesa pública assusta os cidadãos.
Mas o Governo esteve mal na forma como lidou com a greve dos enfermeiros às cirurgias. A ministra da Saúde, Marta Temido, começou por fazer declarações incendiárias para só depois assumir um comportamento de força política, perante uma greve que surgia como bárbara aos olhos dos cidadãos – será que alguém compreende que se adiem cirurgias, incluindo oncológicas? Não foi só o Governo que esteve mal perante a luta dos enfermeiros, o Presidente da República cedeu ao mediatismo, numa espécie de pulsão paternalista sobre o país, imbuído de espírito de salvador da pátria, ao destacar uma equipa médica para seguir um sindicalista em greve da fome – em democracia uma forma radical de luta na fronteira do diálogo social entre poder político e as estruturas sindicais.
A posição de força do Governo em relação aos professores pode colher na opinião pública, assim como o mesmo comportamento face à luta sindical dos enfermeiros. É que, embora as lutas sindicais sejam uma arma de diálogo social em democracia, há limites de bom senso a manter. Os cidadãos, os eleitores, têm real percepção desses limites. A forma absurdamente egoísta e intransigente como professores e enfermeiros conduziram as suas lutas esbarra com o quotidiano do país. Não só os professores e os enfermeiros foram atingidos pela crise do défice, pelos cortes salariais e de direitos que esta trouxe. Houve outros grupos sociais mais atingidos, entre eles, pessoas que agora viram a organização do seu dia-a-dia ameaçada por greves que desestabilizam as escolas dos seus filhos, os que viram as suas cirurgias – ou as dos que lhes são próximos – adiadas por uma greve. E a memória da crise está viva.
O sindicalismo é uma forma democrática de negociação nobre e essencial para o bem-estar social, mas há limites de egoísmo e de radicalismo que esbarram no bem comum. O mal-estar e a incompreensão que essas lutas sindicais possam gerar na sociedade não deverão causar grande desgaste eleitoral no PS. É até de admitir que possam vir a beneficiar a imagem do primeiro-ministro, António Costa, que surge aos olhos do país como defensor do interesse geral e do interesse público, em detrimento de interesses particulares.