Bruxelas exige mais transparência à indústria agroalimentar, para consumidores não basta

A revisão da legislação alimentar europeia surge em resposta às exigências da iniciativa cidadã para banir o glifosato. Acordo com a Comissão e o Conselho vai ao plenário do Parlamento Europeu

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Uma iniciativa contra o glifosato está na origem da revisão legislativa que se antevê direitos reservados

Para poder ser usado pela indústria agro-alimentar e circular no mercado europeu, qualquer novo produto ou substância – seja um aditivo, um aromatizante ou um pesticida, por exemplo – tem de ser autorizado pela Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA, na sigla original), mas até aqui, os estudos científicos que suportavam estes pedidos estavam sujeitos a regras estritas de confidencialidade. A partir de agora, será diferente: caso o acordo provisório entre a Comissão, o Parlamento Europeu (PE) e o Conselho, alcançado em Fevereiro, seja confirmado em plenário nas próximas semanas, estes estudos ficarão automaticamente acessíveis a todos os interessados, logo no início do processo de licenciamento, mal o pedido seja considerado admissível pela agência europeia. Qualquer exigência de confidencialidade das empresas terá de ser devidamente justificada e aprovada pela agência.

A proposta de Bruxelas visa reforçar a transparência do processo de avaliação de risco e dar mais confiança aos consumidores quanto à segurança dos alimentos que circulam no mercado único, mas não foi fácil chegar a acordo. O texto que saiu do último trílogo foi negociado ao detalhe.

“O grande debate foi em torno do que podia ser mantido confidencial a pedido das empresas”, explica o porta-voz do grupo dos Verdes para a segurança alimentar, Bart Staes, “para proteger os seus interesses comerciais”. A lista de razões invocáveis para censurar informação será fechada e não contempla “ideias inovadoras”. “Seria uma porta aberta para praticamente qualquer coisa”, justifica o eurodeputado belga.

“Antes da revisão, a indústria podia reivindicar que quase tudo fosse “potencialmente confidencial”, contextualiza o eurodeputado Pavel Poc, do Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. A partir de agora, para além de haver uma “lista exaustiva” do que pode ou não justificar essa censura, as empresas terão ainda de provar que a divulgação pode prejudicar os seus interesses comerciais “num grau significativo”. Além disso, “a informação que é relevante para avaliar a segurança [alimentar] será sempre divulgada”, adianta o eurodeputado checo. “É um passo claro rumo a uma maior transparência que conquistámos contra uma pressão formidável da indústria nos debates”, congratula-se Bart Staes.

O braço-de-ferro com a indústria fez-se sentir logo na reunião plenária que debateu a proposta ainda em Dezembro. A própria relatora do PE, Renate Sommer, exigiu que o seu nome fosse retirado do texto final então aprovado, após mais de 130 emendas, considerando que o diploma lesava a inovação no sector e promovia “a pirataria de ideias”, expondo segredos comerciais que poderiam assim ser facilmente replicados em países terceiros. Segundo a eurodeputada alemã do grupo Partido Popular Europeu (PPE), a posição votada por maioria no PE era “populista” e motivada pelo ambiente pré-eleitoral. 

“Ao apresentar algumas emendas, também tive a indústria a bater-me à porta”, admitiu, por seu lado, o eurodeputado José Inácio Faria, também do PPE, mas que votou a favor da proposta final, levada ao trílogo. “Não é fácil porque há interesses instalados”, justifica. Por outro lado, diz, “há vários factores que é preciso ter em conta como a própria economia e a adaptação das empresas a novos produtos alternativos”. E “as garantias de confidencialidade também tiveram de ser tomadas em conta”, argumenta, “porque nem oito nem oitenta, no centro é que está a virtude”.

“Não haverá mais casos como o da Monsanto”

Com as novas regras, a EFSA terá ainda de ser notificada de todos os estudos que foram encomendados sobre a substância ou produto a licenciar e haverá sanções para quem não cumprir. Será igualmente lançada uma consulta a outras entidades para verificar se não existem outros estudos ou dados disponíveis relevantes para cada processo e a Comissão poderá mesmo, em casos excepcionais, solicitar à EFSA que realize estudos adicionais para verificar os dados submetidos. “Isto irá terminar com práticas fraudulentas, como a ocultação de estudos desfavoráveis ou a compra de resultados favoráveis”, resume Pavel Poc. E vaticina: “Não haverá mais casos como o da Monsanto”. 

O relatório no qual a EFSA se baseou para autorizar o glifosato, em 2017, foi em grande parte plagiado de um documento entregue pela Monsanto e a indústria produtora da substância às autoridades europeias. As conclusões da agência europeia, que considerou “pouco provável” que o glifosato apresentasse perigo carcinogénico para os humanos contrariavam as da Organização Mundial de Saúde que, dois anos antes, considerara o herbicida genotóxico e “provavelmente” carcinogénico.

Como a própria Comissão reconheceu na avaliação da legislação alimentar, em 2018, para além de estar sujeita a um regime apertado de confidencialidade, a EFSA estava obrigada legalmente a basear as suas avaliações “primariamente em estudos da indústria”, o que só contribuiu para alimentar a desconfiança da sociedade civil na transparência do processo e na independência da agência.

De resto, a proposta da Comissão, que foi apresentada no passado mês de Abril, surgiu como resposta à iniciativa cidadã “Banir o glifosato e os pesticidas tóxicos”, que reuniu mais de um milhão de assinaturas de 22 países europeus. Apesar de Bruxelas não ter aceitado a exigência de retirar o glifosato do mercado – a sua licença foi renovada até 2022 – acedeu em tornar o processo de avaliação mais transparente. As alterações poderão vir a ter consequências também neste caso, já que as novas regras abrangem igualmente os pedidos de renovação de licença para substâncias já em circulação no mercado.

Novo modelo de governança  

Caso o novo diploma seja aprovado, o modelo de governança da EFSA também irá mudar: representantes dos Estados-membros, do Parlamento Europeu e da sociedade civil passarão a marcar presença no conselho de administração da EFSA, 

Para o eurodeputado eleito pelo Movimento Partido da Terra, não se trata de desconfiar da EFSA ou da Comissão, mas sim de “ter a certeza que a decisão tomada é, de facto, a correcta face aos estudos científicos”. “É uma maneira de haver uma maior fiscalização por parte da sociedade civil mas acima de tudo do PE, que tem uma voz activa nisto”, reforça José Inácio Faria. “Agora, as decisões já não são tomadas de ânimo leve. É preciso serem bem justificadas”, resume.

O novo modelo de governança da EFSA “traduz uma melhoria no modo como a segurança alimentar será concretizada em toda a União”, salienta, por seu lado, fonte do Gabinete do Ministro Adjunto e da Economia, e reforça a “colaboração e a co-criação” ao trazer os Estados-membros para o conselho de administração da autoridade europeia.

O acesso aos dados utilizados nas avaliações científicas de risco permitirá às partes interessadas “entender melhor como as conclusões foram alcançadas e até mesmo reproduzir os resultados”, refere ainda o ministério e, para os consumidores, a disponibilização de informação ajuda a sustentar “escolhas saudáveis” e a “reduzir o risco de doenças transmitidas por alimentos”. E apesar de ainda não haver uma data para a entrada em vigor do diploma, a autoridade europeia “tem previsto alargar as bases de dados abertas e optimizar o acesso aos seus dados até 2020”.

Os estudos científicos no âmbito do processo de avaliação de risco são realizados centralmente pela EFSA e, por isso, “não estão previstas alterações significativas no trabalho da ASAE”, que é o ponto focal da autoridade europeia em Portugal, esclarece o ministério. Esperam-se, contudo, outros benefícios, para o trabalho da autoridade nacional nomeadamente no plano da eficiência, por via do “acesso rápido a informações sobre temas de segurança humana e animal”; da inovação, facilitando-se “o desenvolvimento de produtos e serviços digitais transfronteiriços”, a partir de dados normalizados a nível europeu; e económico, através do “uso compartilhado de ferramentas e tecnologias para dados abertos entre agências governamentais” e da implementação de “programas de monitorização e vigilância com custos mais reduzidos”.

A DECO também só vê vantagens em que haja “maior transparência” e os consumidores possam estar “a par da informação” que existe sobre cada produto ou substância. “A interpretação dos estudos é que, depois, dependerá de cada caso”, recorda Dulce Ricardo, coordenadora de Alimentação da Associação de Defesa do Consumidor.

Aliás, se a alimentação consumida na União Europeia está “em grande medida livre”, ou abaixo dos níveis legais previstos, de resíduos de pesticidas, medicamentos veterinários ou outros contaminantes, segundo os dados de Bruxelas, organizações de direitos dos consumidores como a Foodwatch têm alertado para o facto de os próprios limites legais de serem demasiado permissivos, nomeadamente no caso de pesticidas e dioxinas, e o número de análises exigidas ser demasiado baixo. Em alguns casos, esta organização defende mesmo a proibição de substâncias autorizadas (como alguns aditivos) por terem efeitos potencialmente adversos na saúde, comprovados cientificamente.

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