Projecto urbanístico propõe demolição de obra de Raul Lino no Porto
Câmara do Porto garante que não tomou qualquer decisão sobre o pedido de licenciamento para o lote onde foi erguida, nos anos 30, aquela que será, hoje, a única casa do arquitecto na cidade.
A Câmara do Porto garante que ainda não tomou qualquer decisão sobre o pedido de licenciamento de um conjunto de seis moradias, cuja aprovação implicaria a demolição daquela que é a única casa projectada nesta cidade por Raul Lino, um dos nomes maiores da arquitectura portuguesa do século XX. O alerta para o risco que impende sobre o imóvel, abandonado e sem qualquer protecção legal, foi dado esta quinta-feira pelo grupo cívico Forum Cidadania Porto.
Numa carta enviada ao presidente da Câmara do Porto e à família Lino Pimentel, vários elementos do Forum Cidadania tentam sensibilizá-los para a importância desta obra – desde logo por ser a única, que se saiba, no Porto, de Raul Lino (1879-1974), e para a perda que a sua destruição significaria. A casa, projectada em 1930, foi descoberta em 2014 por Carla Garrido de Oliveira durante a elaboração da sua tese de doutoramento, dedicada à obra deste arquitecto.
“Esta casa, embora actualmente abandonada e vandalizada, é um exemplar de referência na obra de Raul Lino, tendo sido por este arquitecto destacada no livro Casas Portuguesas por si escrito. É de notar que existem poucas obras de Raul Lino na região Norte, sendo esta uma das poucas casas edificadas neste território e a única conhecida na região do Porto”, escrevem Alexandre Gamelas, Carlos Machado e Moura, Francisco Queiroz, José Costa Marques, José Pedro Tenreiro, Nuno Gomes Oliveira, Nuno Quental, Paulo Ferrero, Sérgio Braga da Cruz e Virgílio Marques.
Nesta mesma carta, os signatários protestam “veementemente” contra a possibilidade de demolição e solicitam a melhor atenção de Rui Moreira “para este projecto que, a não ser corrigido de modo a se preservar e recuperar a referida moradia, significará mais um forte rombo, da exclusiva responsabilidade do actual executivo camarário, no Património da cidade e de todos nós”, insistem.
O processo deu entrada já no ano passado nos serviços municipais. Prevê, como já referido, que o lote de quase 60 metros de comprimento situado perto da Avenida da Boavista, no gaveto da Rua Ciríaco Cardoso com a Rua Carlos Dubini (aberta já nos anos 50), seja dividido em seis, para construção de outras tantas moradias, com frente para esta segunda rua. O desenho revelado pelo Forum Cidadania mostra seis casas de estilo contemporâneo e não prevê a manutenção da preexistência.
Na altura em que foi revelada que esta seria uma obra de Raul Lino várias vozes se levantaram a defender a classificação do imóvel, pelo menos a título municipal. O município não respondeu, então, às questões do PÚBLICO sobre a possibilidade de classificação, e esta quinta-feira voltou a não esclarecer se chegou a avaliar essa possibilidade. Certo é que a casa não está, efectivamente, protegida.
A autora da pesquisa que levou à localização desta casa, e que é investigadora da Faculdade de Arquitectura do Porto, remeteu para mais tarde uma posição sobre este processo urbanístico. Em 2014, quando trabalhava sobre os livros em que Raul Lino defendeu e documentou a sua posição estética sobre a arquitectura doméstica em Portugal, entre 1918 e 1933, Carla Garrido de Oliveira deparou com uma estampa do projecto de uma “casa num subúrbio do Porto”, datado de 1930. Na altura, como escreveu o PÚBLICO, Carla Oliveira pensou que poderia tratar-se de um projecto não realizado, mas, atendendo a que Raul Lino tinha escrito, no livro A Nossa Casa (1918), que “o seu propósito era divulgar projectos construídos”, decidiu partir para o terreno e pesquisar com, mais profundidade.
Moradia com poucos elementos decorativos
Entre a base de dados da Fundação Gulbenkian relativa à obra do arquitecto da Casa do Cipreste (Sintra) – onde se encontram “listados uma dezena de projectos para o Porto”, notava então –, e o arquivo da Câmara Municipal do Porto, a investigadora encontrou mais informação sobre o projecto, uma encomenda do médico João de Almeida, e que aparece assinado pelo arquitecto José dos Santos e não por Raul Lino. Através dos documentos, chegou à rua Ciríaco Cardoso, onde descobriu, já abandonada, a casa que, na sua intuição, será a única das obras de Lino na cidade que chegou aos nossos dias.
“Apesar da degradação evidente, a casa mostra ainda uma grande solidez construtiva”, realçava, então Carla Garrido de Oliveira, que mostrou ao PÚBLICO uma moradia “burguesa típica”, de três pisos e com uma área de 97 m2, que “não tem – se calhar, é por isso que passou despercebida até agora – aqueles aspectos superficiais, os clichés mais folclóricos normalmente associados à arquitectura de Raul Lino: o beiralinho, a faixa de azulejo e esses aspectos decorativos que depois se tornaram o modelo propagandeado pelo Estado Novo”, explicou.
Quando a descoberta foi revelada, Michel Toussaint, professor da Faculdade de Arquitectura na Universidade Técnica de Lisboa, considerou-a “uma boa notícia” com “com relevância para a história da arquitectura portuguesa”, e que ajudava a confirmar que o autor da Casa do Cipreste construiu em todo o país, incluindo “também nas ex-colónias”. O PÚBLICO tentou, sem sucesso, contactar o investigador que, nessa altura, defendia que, pelas suas características e pela sua raridade nesta cidade, este imóvel “deveria ter uma protecção patrimonial”.