Colecção Teixeira de Freitas é mostrada em Madrid: “Acho ridículo abrir um museu com a minha colecção”
Em Madrid, no programa paralelo à ARCO, é possível ver a colecção de Luiz Teixeira de Freitas, raramente apresentada ao público no seu conjunto. Uma belíssima montagem que sublinha a qualidade das obras.
No dia 9 de Junho de 2009, Jonathan Monk enviou uma nova polaroid ao coleccionador Luiz Teixeira de Freitas. Desta vez, o artista inglês tinha plantado uma metasequoia, como explicava a legenda, que também identificava a data da realização da fotografia. Mas, tal como nas imagens anteriormente enviadas, não era possível identificar a geografia onde a árvore tinha sido plantada.
“Durante dez anos, de 2007 a 2017, o artista plantou várias árvores em homenagem ao meu pai. Duas vezes por ano, ele recebia uma fotografia polaroid de uma árvore. O meu pai comprou uma homenagem a si próprio”, diz Luiza Teixeira de Freitas, que é a curadora da exposição No habrá nunca una puerta. Estás adentro, que reúne 300 obras da Colecção Teixeira de Freitas, inaugurada na segunda-feira na Sala de Arte Santander, situada nos arredores de Madrid, no programa paralelo à ARCOmadrid, a feira de arte contemporânea que decorre até domingo na capital espanhola, na qual estão presentes 203 galerias, entre as quais 13 portuguesas.
Tree Piece, que inclui 20 polaroids, foi a obra escolhida por Luiza Teixeira de Freitas para fazer a capa do catálogo, numa das raras exibições exclusivamente dedicadas à colecção deste brasileiro há décadas radicado em Lisboa e que esta quinta-feira foi apresentada à imprensa estrangeira. “Esta obra é muito conceptual, tal como a colecção do meu pai. Todas as obras têm uma história. Não se sabe onde foram as árvores plantadas: a ideia é que se misturem com a natureza e nunca mais as encontremos”, explica a curadora numa conversa com o PÚBLICO.
No texto que acompanha a polaroid, Jonathan Monk lembra ao coleccionador e ao público futuro o que é a obra de arte: “É importante perceber que esta documentação é pura documentação e que é a plantação das 20 árvores que constitui a forma desta peça.”
Tree Piece, um work in progress que teve a duração de uma década, “fala da relação do artista com o coleccionador”, continua a curadora, numa série de afinidades que torna difícil destrinçar onde começa a arte e acaba a vida, ou vice-versa — porque nunca haverá uma porta, como lembra o título da exposição, e já estamos dentro.
Obsessão de coleccionar
A exposição mostra o trabalho de 190 artistas, alguns dos quais representados com muitas obras, como é o caso do mexicano Damián Ortega, de que a curadora destaca Miracolo Italiano, Obelisco Transportável e Tecnological DNA.
É sobre esta última obra que Luiza Teixeira de Freitas se detém para dizer que não há como fugir às afinidades, principalmente para esta curadora, que é também filha de um coleccionador. “A obra é uma hélice de DNA construída com paus, ferramentas, feitas por chimpanzés da Nigéria. Esse é o trabalho do meu marido, que é biólogo e primatólogo.”
Foi o trabalho de campo do doutoramento de Gonçalo Jesus na University College London que permitiu à família convidar Damián Ortega para fazer uma residência ligada ao projecto Gashaka Primate Project, do conhecido primatólogo Volker Sommer. “Ele esteve dois meses connosco na Nigéria e daí saiu uma exposição, chamada Apestraction, que fiz com ele em 2013 no Freud Museum. Esta é uma das obras centrais dessa exposição.”
Luiz Teixeira de Freitas, como diz o comunicado sobre a exposição da Fundação Santander, colecciona de uma forma obsessiva, com artistas como Damián Ortega representados com mais de 30 obras, numa colecção que começou a ser feita há quase 20 anos.
“Quando vejo tudo isto reunido aqui pela primeira vez, interrogo-me sobre o que me move. Porquê esta obsessão de coleccionar?”, comenta o coleccionador esta quinta-feira quando lhe perguntamos como é olhar para as obras em conjunto, muitas delas nunca antes exibidas.
Um dos paradoxos de coleccionar é que para ele não faz muito sentido apresentar as obras sob o chapéu “Colecção Teixeira de Freitas” ou pensar em abrir um museu em nome próprio. “Acho ridículo abrir um museu com a minha colecção, porque passa a ser sobre o tonto do coleccionador, que não fez nada. O artista acaba por ser secundário.” O que tem feito é emprestar extensivamente as obras, sem nenhuma restrição, como fez agora para a exposição de João Onofre na Culturgest, em Lisboa.
Outras das afinidades do coleccionador é com um dos donos da galeria mexicana Kurimanzutto, que este ano não está presente na ARCOmadrid. “Se olharmos para os artistas da galeria, há uma grande sobreposição com a colecção. O melhor amigo do meu pai é o José Kuri, mas não lhe comprou arte, porque eram amigos, foi antes a arte que os juntou.” Representados pela Kurimanzutto, para citar mais alguns nomes, estão também na exposição Abraham Cruzvillegas, Allora e Calzadilla, Danh Vo ou Monika Sosnowska.
Coleccionar é então uma obsessão de Luiz Teixeira de Freitas que envolve várias afinidades, continua o comunicado da Fundação Santander: “Artistas, especialistas, galeristas, curadores, críticos. Todos aqueles que formam o mundo da arte e me ensinaram a procurar o meu próprio caminho, quem sabe até a minha própria identidade.”
A colecção começou a ser feita em 2002, tendo crescido nos primeiros dez anos à volta de aquisições realizadas com a assessoria de Adriano Pedrosa, o actual director do Museu de Arte de São Paulo (MASP), numa pesquisa muito ligada à área da arquitectura, nomeadamente aos temas da construção e da desconstrução.
Recentemente, o núcleo de trabalhos sobre papel, com cerca de 700 obras, conhecido como Colecção de Desenhos da Madeira, foi retirado do Museu de Serralves, no Porto, onde estava em depósito, no rescaldo da demissão do director João Ribas, provocada pela polémica à volta da exposição de Robert Mapplethorpe. Em Madrid, alguns destes desenhos ocupam uma das 17 salas da exposição, sendo aqui que encontramos alguns dos 18 artistas portugueses presentes, como José Pedro Croft, Luís Lázaro Matos, Pedro Barateiro, Pedro Cabrita Reis, Jorge Queiroz ou Helena Almeida.
Coube à instalação da polaca Monika Sosnowska, comprada no primeiro período de dez anos sob a alçada de Adriano Pedrosa, servir à curadora para organizar o layout da exposição. “Foi a partir deste labirinto life size, um pouco claustrofóbico, que construí a ideia da exposição. Não há um percurso definido, a pessoa pode andar para trás e para a frente.” Num corredor forrado com papel de parede, dobrámos uma dezena de esquinas até não conseguirmos progredir mais, porque o espaço se tornou demasiado estreito.
Na sua cabeça, Luiza Teixeira de Freitas foi organizando temas para cada sala, mas a certa altura, a conselho de um amigo curador, sentiu necessidade de esquecer os conceitos para olhar mais para a arte propriamente dita. “A coisa foi ficando tão temática, muito escola de curadoria Goldsmith, que não estava a funcionar. Às tantas, nós, os curadores, quase que invadimos o espaço dos artistas, porque duas obras que falem de futebol podem não ter nada que ver uma com a outra. Tive de me focar um bocadinho mais no formalismo e deixar a arte falar por ela mesma. Por isso, a curadoria acaba por viver dessa oposição conceito/formalismo.”
A questão da palestina
Há uma sala que fala mais de literatura, uma vez que Luiz Texeira de Freitas tem uma paixão por livros. Nos últimos cinco anos, aliás, começou a formar-se um núcleo de livros de artistas e efémera (material impresso ou escrito), tendo recentemente pai e filha lançado a editora Taffimai. Uma das obras importantes aqui exposta, aponta Teixeira de Freitas, é o livro de artista de Alighiero Boetti, em que este organizava viagens fictícias para as pessoas que lhe estavam próximas, como Bruce Nauman. É uma forma de chegar a artistas que fazem sentido na lógica da colecção, mas que são demasiado caros, como Dan Flavin ou Sol LeWitt. “Noventa por cento dos artistas da colecção eram jovens quando os comprei.”
Embora não tenha um gosto especial pela geografia, devido à herança libanesa da família, um dos núcleos tem que ver com o Médio Oriente, onde cabe a obra de Emily Jacir ou de Walid Raad, peças também muito políticas, outro dos interesses do coleccionador. A questão da Palestina está muito presente e o coleccionador tem um foco nos jovens artistas da região.
No meio destas salas temáticas, Luiza Teixeira de Freitas optou por apresentar grandes instalações, como a do mexicano Abraham Cruzvillegas, com o objectivo de deixar respirar a exposição dos conceitos. “Em Horizontes, ele pintou os objectos de uma casa inteira de verde e rosa. São as cores da Mangueira, a escola de samba do Rio”, conta Luiza Teixeira de Freitas, lembrando o samba-enredo do Carnaval de 1994, Atrás da Verde-e-rosa Só Não Vai Quem Já Morreu. “O trabalho de Abraham Cruzvillegas é sobre como os objectos se podem tornar rapidamente outra coisa. Aqui, quando são pintados, retiramos-lhes as suas funções e transformamo-los em esculturas.”
Entre os portugueses, já perto do final da exposição, a curadora destaca os espaços dedicados à dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva, onde encontramos três filmes e uma escultura, e a Julião Sarmento, com a peça Respirações. Surgem, antes do grande final com dois filmes de Alexandre Estrela, projectados sobrepostos na obra Viagem ao Meio, feita no Túnel das Sete Cidades, nos Açores. Entramos num espaço escuro, onde um ponto de luz baila no ecrã, porque a saída talvez nunca chegue, como num labirinto – é um convite a que o visitante volte para trás e comece de novo a ver a exposição.
Com alguma sobreposição de artistas, nomeadamente de portugueses, está também em Madrid a colecção António Cachola, que em 2016 recebeu o Prémio A para coleccionismo atribuído pela Fundación Arco. Exibida no espaço La Nava Sánchez-Ubíria, entra em diálogo com a colecção de arte contemporânea do casal Margarita Sánchez e Sebastián Ubiría, mostrando obras de Helena Almeida, Pedro Barateiro, Von Calhau!, Rui Chafes, Alexandre Estrela, Rita Ferreira, Fernanda Fragateiro, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Igor Jesus, Musa Paradisiaca, Andreia Santana e Ana Rito. Do lado espanhol são apresentados artistas como Joseph Beuys, Marlene Dumas, Bruce Nauman, Robert Mapplethorpe ou Kader Attia. Intitulada O Fantasma de Uma Oportunidade tem igualmente uma curadoria portuguesa, de Ana Cristina Cachola, também filha do coleccionador, convoca o romance de William S. Burroughs para discutir fantasmas, assombrações, espectros e sombras na cultura visual contemporânea.
Se não contarmos com as exposições comissariadas por João Fernandes, subdirector do Museu Rainha Sofia, sobe para três o número de curadores portugueses que foram convidados a organizar exposições no programa paralelo à ARCOmadrid, uma vez que João Laia apresenta na Casa Encendida a exposição Drowning in a Sea of Data.
O PÚBLICO viajou a convite do Turismo de Espanha