Não são eles, somos nós
Há todo um mundo de consumo público de alimentos que não tem a menor orientação para a viabilização das actividades do mundo rural que possam gerir matos.
Quando pomos manteiga num pão, estamos a financiar a produção de manteiga, a produção de leite e a criação de searas para as rações.
Quando molhamos o pão em azeite, estamos a financiar olivais.
As nossas paisagens gerem-se assim e o resultado final que temos depende, essencialmente, das nossas opções enquanto consumidores.
Seja o mais tecnológico produtor de milho, usando drones associados a tractores que se orientam por GPS, com computadores que recebem a informação do drone para comandar a distribuição de adubos ou de fitofármacos de forma muito precisa, seja o Thomas da Quinta das Águias, que quer simplesmente uma vida comandada por si, nenhum produtor é um poeta que vai à procura dos lírios do campo, é sempre um agente económico amarrado a um princípio fundamental: os recursos gastos a gerir a sua propriedade não podem ser maiores que o retorno que se obtém, sob pena de não haver futuro para a exploração.
Quando este princípio não se verifica, e o dono do terreno não tem maneira de receber pelo menos o equivalente ao que gasta, ou o dono vende o terreno a quem ache que consegue tirar mais partido dele ou, se não encontrar comprador pelo preço que pretende, abandona a gestão.
Em grande parte do território nacional é isto que se passa, não há interessados em gerir as propriedades porque não é fácil ter menos custos que o rendimento que se pode esperar.
Pretender que a responsabilidade dos fogos e dos seus efeitos é destas pessoas pode deixar-nos de consciência tranquila e levar-nos a exigir ao Estado que obrigue estes calões a fazer o que devem, sob pena de ficarem sem os terrenos, mas não resolve o problema, porque muitos terrenos continuam a ter mais custos de gestão que rendimento, seja quem for o dono do terreno e, consequentemente, continuarão abandonados.
Na verdade, o problema é nosso, não é deles, que se limitam, como quase todos nós, a responder aos estímulos económicos que lhes damos.
Lembro-me de ter tentado convencer responsáveis da Sonae Distribuição a promover o consumo de produtos cuja produção tinha efeitos positivos na conservação da natureza. Recebi muita simpatia, para além da explicação de que isso interessa a 3% dos consumidores mas o Continente vive dos outros 97%.
Lembro-me de ter falado com responsáveis da Jerónimo Martins, no contexto da mobilização social pós fogos de 2017, procurando convencê-los a ter um conjunto básico de produtos cuja produção tivesse efeitos concretos na gestão de combustíveis, recebi muita simpatia e a explicação de que o cliente do Pingo Doce quer é preço. Deram-me até o exemplo do porco Pingo Doce, em que a empresa tinha investido bastante, mas que o cliente deixava ficar no talho por ter porco mais barato ao lado, independentemente da qualidade da carne e dos modos de produção mais sustentáveis.
Não me lembro de nenhum presidente de câmara, mesmo das zonas mais afectadas pelos fogos, que prescinda do preço mais baixo no fornecimento das refeições das escolas, mesmo que uma pequena diferença de preço permitisse aos miúdos comer qualquer coisa que ajudasse a gerir os matos, mesmo nos concelhos que se reclamam como a capital mundial, um, a capital universal, outro, da chanfana.
Não tenho ideia de nenhuma orientação da segurança social para que nas milhares de refeições diárias em lares, centros de dia, etc., se procure assegurar que 1% dos alimentos servidos provenham de actividades que possam gerir matos.
Não tenho ideia de nenhum director de cadeias que procure garantir que 1% dos produtos com que se garante a alimentação dos presos venha de actividades que façam gestão de combustíveis, o que aliás não me admira, visto que o dinheiro que a sociedade entrega a cada director de prisão para alimentar diariamente um preso é miserável, e nós achamos bem.
As forças armadas, os beberetes de inaugurações, os almoços de trabalho, as cantinas sociais e escolares, todo um mundo de consumo público de alimentos não tem a menor orientação para a viabilização das actividades do mundo rural que possam gerir matos.
O mesmo Estado que, por pressão da sociedade, gasta 26 mil euros por ano a financiar uma equipa de sapadores florestais que, em média, gere 40 hectares de combustíveis com recurso a equipamentos importados e energias fósseis, criando cinco empregos muito mal pagos, é o mesmo Estado que se recusa a discutir a hipótese de pagar a quatro pastores 6500 euros a cada um (os mesmos 26 mil euros que gasta com uma equipa de sapadores) para apoiar a criação de quatro rebanhos de 150 cabras que conseguem gerir não 40, mas 400 hectares de combustíveis, com recurso a produção endógena, quase sem consumo de energias fósseis, com efeitos positivos na introdução de matéria orgânica do solo e a criação de riqueza inerente à produção das 600 cabras dos quatro rebanhos.
Não, os fogos que temos não são da responsabilidade deles, os fogos que temos são da nossa responsabilidade, resultam de comermos pouco cabrito, de não querermos pagar a gestão dos serviços que nos prestam os produtores rurais, seja quando vamos às compras, pagando mais pelo que vale mais, seja quando exigimos ao Estado que imponha obrigações absurdas a quem não tem maneira de as cumprir, em vez de exigir ao Estado que assuma os custos de gestão de serviços de ecossistema que nos interessam a todos, mas que o mercado não paga.
Somos nós, não são eles, que exigimos à GNR que vá multar os pastores que fazem uma queimada útil a todos, em vez de exigirmos ao Estado que alimente convenientemente estes homens com cabritos produzidos por esses rebanhos.