A Igreja e o crime
A Igreja ou encara que tem criminosos no seu seio e age segundo o direito civil ou transforma-se num covil de fanáticos cuja moralidade autoproclamada é simplesmente uma farsa.
O Papa tentou fazer uma coisa radicalmente diferente para combater o abuso sexual de menores na Igreja. A reunião que promoveu foi de uma enorme coragem, ao dar voz às vítimas de abusos. Mas o discurso final de Francisco, ao lembrar que o abuso sexual de menores existe em todo o lado, nomeadamente dentro da família, e que a Igreja é apenas uma gota no oceano do crime, minimiza o crime na instituição de que é chefe supremo ou, na linguagem dos católicos, o representante de Deus na terra.
Isto era o que Francisco não podia fazer, assim como não podia despachar o assunto com meia dúzia de banalidades que provocaram a desilusão e raiva nas vítimas e nos líderes das organizações que as representam. Sabe-se que o Papa vive encostado entre a espada e a parede: uma boa parte da Igreja preferia esconder os esqueletos debaixo do armário, mantendo dentro da sua casa todos os criminosos já identificados e condenados, como acontece em Portugal e um pouco por todo o mundo. As palavras de há dias de Manuel Clemente, o cardeal-patriarca de Lisboa, quando afirmou que os casos de abusos sexuais na Igreja portuguesa eram "pouquíssimos", representam essa tal menorização do crime, esse desejo atávico de o ignorar.
Eu não sou católica, não reconheço à Igreja mais autoridade moral do que a qualquer outra associação humana. Mas a Igreja prega a sua autoridade moral e é chocante perceber como as palavras estão tão distantes da realidade.
A Igreja ou encara que tem criminosos no seu seio e age segundo o direito civil ou transforma-se num covil de fanáticos cuja moralidade autoproclamada é simplesmente uma farsa. É verdade que Francisco tem muitos inimigos, e que vai agindo com a margem política que tem – e que não é muita –, mas só salvará a Igreja de si própria se aceitar uma revolução.
A necessidade que o Papa voltou a ter de insistir no dogma da castidade obrigatória mostra que neste capítulo continuamos na mesma. Há quase 40 anos, numa aula de religião e moral, a minha amiga Guida, que era a pessoa com mais lata da turma, perguntou ao padre E. – um homem profundamente inteligente e sábio – o que pensava ele do casamento dos padres. O padre E. não se assustou nem perdeu a compostura. Disse que o casamento não era para ele, que estava muito bem assim, que não tinha vocação para marido de ninguém, mas que concordava que os padres deviam poder casar. Ficámos contentes por ter um padre assim como professor de Moral. Esta semana no PÚBLICO, o padre Anselmo Borges insistia que o celibato obrigatório não fazia sentido. A Igreja libertar-se-ia no dia em que tivesse coragem para acabar com um dogma que pode ser um incentivo ao crime. Encarar as vítimas foi uma boa iniciativa, mas a Igreja tem que fazer mais.