O que está em jogo com o fim da unanimidade fiscal na Europa?
Costa é a favor, mas a maioria dos governos europeus é contra o fim da exigência da unanimidade como método para votar as políticas fiscais. Para já, não avançará. É uma boa ou uma má ideia para o projecto europeu e para Portugal?
É uma ideia com mais de 15 anos e de difícil consenso, mas o simples facto de o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, a ter ressuscitado bastou para relançar a pergunta: a Europa ficaria a ganhar ou a perder se as políticas fiscais passassem a ser aprovadas no Conselho Europeu por maioria qualificada, em vez de se exigir a unanimidade — a regra de ouro de sempre — para votar estas matérias?
Embora o Governo português esteja acompanhado de Espanha, França e Itália no apoio a esta proposta, António Costa aparece em Portugal isolado à esquerda e à direita. Como na Europa a maioria dos governos está contra a mudança das regras do jogo, não abrindo mão de poder exercer o poder de veto numa matéria tão sensível como a fiscalidade, restam poucas dúvidas de que a alteração não avançará para já.
Há quem veja na unanimidade um anacronismo que vem dos anos 1950 e que hoje só aproveita aos países que mais apostam na concorrência fiscal agressiva, como a Holanda, o Luxemburgo ou a Irlanda, porque assim conseguem bloquear uma decisão que a maioria quer aprovar. Outros contrapõem que foi com a unanimidade — apesar da unanimidade — que se conseguiram consensos impensáveis na cooperação fiscal e na luta contra a evasão, muito pela força que as opiniões públicas exerceram. E há quem alerte para os perigos de uma votação por mera maioria produzir consensos menos duradouros e, no limite, motivar revoltas fiscais num país que apareça vencido na votação.
Estão os Estados a abdicar de uma reserva de soberania ao deixarem de poder vetar uma decisão? Ou a mudança representaria antes uma soberania partilhada que protegerá as soberanias fiscais nacionais? Portugal tem mais a ganhar do que a perder? Afinal, o que está em jogo?
Sem retirar dos governos nacionais as competências que hoje têm na área fiscal, nem harmonizar as taxas de IRS ou IRC, passar para a maioria qualificada significa adoptar o modelo de votação que já existe noutros domínios, como na harmonização das regras do mercado único, do direito penal ou da cooperação judiciária e policial, bastando que uma proposta recolha os votos a favor de 55% Estados-membros (16, desde que representativos de pelo menos 65% da população da UE).
Bruxelas sustenta que a unanimidade impede a Europa de “reagir” e de se “adaptar” mais rapidamente, porque “certas questões que, no passado, talvez pudessem ser discutidas durante vários anos, podem hoje ter de ser resolvidas no espaço de meses.”
Jean-Marie Monnier, professor de economia na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, afirma ao PÚBLICO que “os fracassos da Europa em matéria fiscal são antigos e de consequências pesadas” por terem transformado “profundamente o sentido da construção europeia” desde os primeiros passos do mercado único. Mas, avisa, a passagem à regra da maioria qualificada “nada salvaguarda” por si só, se não houver “um projecto capaz de criar uma mobilização em torno da Europa”.
Também Jan Pedersen, professor de direito fiscal na Universidade dinamarquesa de Aarhus e ex-chairman do Nordic Tax Research Council, lembra que a política fiscal é uma pedra angular da soberania nacional, tanto mais quando os interesses políticos dos Estados-membros são diferentes entre si. Pedersen dá o exemplo do seu país: “O sistema tributário dinamarquês, bem como o sueco e o finlandês, é singular graças ao modelo escandinavo e não acredito que algum dos partidos políticos da Dinamarca apoie uma mudança tão radical.”
Na proposta que fez ao Conselho Europeu, a Comissão Juncker defende que os países têm usado a regra da unanimidade para “proteger interesses nacionais específicos em detrimento do mercado único”, bloqueando determinados dossiers, como o da declaração normalizada de IVA a nível europeu. E não se coíbe de dizer, embora sem nomear algum país, que isso tem acontecido com Estados-membros com “regimes fiscais atractivos para empresas ou grandes fortunas” ou países que aplicam uma carga fiscal mais baixa ao consumo do tabaco e álcool. Por isso argumenta: “É legítimo perguntar se uma situação em que um Estado-membro pode, por si só, bloquear as iniciativas pretendidas pelos outros 27 é benéfica para a soberania nacional do conjunto dos 27 Estados-Membros”.
Em contraponto, sustenta que a “coordenação das políticas fiscais a nível da UE pode efectivamente proteger a capacidade de acção” e produzir melhores resultados porque, diz, “quando os Estados-membros exercem a sua soberania a nível da UE em relação a questões fiscais fundamentais, tal é muitas vezes mais útil do que quando exercem a sua própria soberania nacional neste domínio no novo contexto internacional.”
Ao ler estes argumentos, o advogado português Nuno Sampayo Ribeiro, especialista em direito fiscal, sentiu falta de “uma reflexão sobre o perigo de um determinado imposto ser aprovado perante o voto contrário de um determinado Governo, que, ao introduzi-lo no seu país, se depara com a resistência dos seus cidadãos”.
Por isso pergunta: “O que é que sucederá se um determinado Governo se opõe a uma medida que é depois aprovada? Vai chegar junto da sua opinião pública e aplicar esse imposto? E se a opinião pública rejeita?”. A história, diz, ensina que as revoltas fiscais evidenciam esse perigo, do século XIX aos dias de hoje. “Basta pensar que em Portugal, não há muito tempo, houve — não diria uma sublevação — mas [uma manifestação contra] a Taxa Social Única [em 2012, que motivou um recuo do Governo de Pedro Passos Coelho]. Se formos mais atrás, a revolta da Maria da Fonte esteve ligada a questões de desaprovação do imposto que se pretendia introduzir. A regra da unanimidade é a que melhor pode originar consensos duradouros.” Outro caso: “Se olharmos para França, a reivindicação fiscal inclui ou não o caderno dos coletes amarelos?”.
Transição suave até 2025
O que a Comissão propõe é uma transição suave, em que só a partir de 2025 é que o fim da unanimidade se aplicaria de forma igual a todas as matérias fiscais. Até lá, ainda existiria para alguns assuntos, para outros acabaria mais cedo.
Haveria quatro fases. Num primeiro momento, já se aplicava às votações das medidas de cooperação e a assistência mútua entre os Estados-Membros no âmbito da luta contra a fraude e a evasão fiscais, e a medidas de harmonização das obrigações declarativas. Ou seja, medidas onde já se deram alguns passos e onde houve avanços por unanimidade.
Depois, seria alargada às medidas fiscais relacionadas com a luta contra as alterações climáticas, a protecção do ambiente ou a melhoria da saúde pública. Na terceira fase, às regras do IVA e dos impostos especiais de consumo.
Por último, chegaria às matérias onde os governos estão ainda longe de um consenso alargado: tributar as empresas digitais e avançar com um sistema central para as empresas consolidarem todos os lucros e prejuízos que tenham registado no espaço europeu (MCCCIS, o projecto da matéria colectável comum consolidada do imposto sobre as sociedades).
Sampayo Ribeiro diz que “a própria Comissão verifica que foram dados importantíssimos saltos na integração fiscal europeia, apesar da regra da unanimidade”, pois houve avanços “na eliminação do sigilo bancário para efeitos fiscais, nas directivas da cooperação administrativa, nas obrigações de transparência dos intermediários fiscais (bancos, advogados, consultores), nas listas das jurisdições não-cooperantes [paraísos fiscais]”. Tudo isso, argumenta, mostra que “é possível aprofundar a integração com a regra da unanimidade.”
O PÚBLICO procurou obter uma posição do Governo português para desenvolver os argumentos de Lisboa neste debate, mas não foi possível em tempo útil declarações de um responsável político do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O tema já teve palco no Parlamento, com António Costa a responder ao CDS que a unanimidade só tem favorecido os países europeus mais agressivos a nível fiscal.
Os dois planos
Não é preciso ir muito longe para encontrar medidas que continuam bloqueadas, como a criação de um imposto sobre as grandes empresas digitais, o imposto GAFA (assim conhecido por causa das iniciais dos gigantes tecnológicos Google, Apple, Facebook, Amazon). “O recente fracasso das negociações no domínio da fiscalidade do digital ilustra a desagregação do espírito de cooperação num espaço cuja vocação inicial era a de fortalecer a solidariedade dos povos, fartos de séculos de confronto”, expõe Jean-Marie Monnier. Mas a passagem da regra da unanimidade, concorda, “oferece por si só poucas garantias de uma evolução positiva”. Na verdade, diz este professor da Sorbonne, é preciso que a mudança não crie “alianças oportunistas em torno de interesses de circunstância, partilhados apenas transitoriamente”.
É um dos alertas que também Nuno Sampayo Ribeiro deixa à reflexão. Entende que a tributação será “absolutamente fundamental” para religar o projecto europeu aos cidadãos e que a melhor forma de conseguir consensos duradouros é por unanimidade. “Uma coisa é decidir por unanimidade, outra é decidir por maioria qualificada”, afirma, sublinhando ser preciso separar entre o plano das medidas concretas e o processo de decisão dessas mesmas medidas.
Sampayo Ribeiro coloca a tónica na mobilização da opinião pública, porque tem sido essa pressão, e continuará a sê-lo, o garante de que os governos acabam por pôr fim a medidas das quais pareciam não querer abrir mão. E dá como exemplo o que se passou “em 2013, na sequência do caso Jérôme Cahuzac — o ministro francês com o pelouro do combate à evasão fiscal que tinha uma situação curiosa de rendimentos não declarados na Suíça”. A Europa, lembra, “avançou decisivamente como líder mundial na luta contra a evasão e a fraude fiscal”, com grandes impulsos, “removendo a resistência férrea de países como a Áustria, a Bélgica, o Luxemburgo.” E tudo isso, diz, foi viabilizado por unanimidade “justamente porque a opinião pública exigia essas medidas.”
Também Jan Pedersen acredita que será muito mais fácil que “todos os Estados-membros aceitem as novas directivas da UE em relação à evasão fiscal, à economia digital, à economia global. Os desenvolvimentos políticos mostram que a atitude crescente dos eleitores contra a evasão fiscal é tão forte que até os Estados com regimes fiscais favoráveis serão forçados a aboli-los. Basta pensar no que aconteceu com o sigilo bancário suíço!”
Combater os desvios
Na proposta que apresentou ao Parlamento, a Comissão Europeia reconhece que os países viram na regra da unanimidade uma possibilidade de proteger a soberania e sustenta ao mesmo tempo que a mudança “não afectaria” as suas actuais competências no domínio da fiscalidade. “A dimensão dos desafios que os Estados-membros enfrentam actualmente” – seja a digitalização ou “pressões externas” concretas como a reforma fiscal lançada por Donald Trump nos Estados Unidos – “significa que não se pode permitir que as decisões importantes sejam bloqueadas por um único Estado-membro”, defendeu o executivo comunitário.
Mas não ficam os países mais pequenos a perder poder de influência? Olhando para os países conhecidos pela concorrência fiscal mais agressiva, Monnier lembra que a Irlanda, o Luxemburgo e a Holanda “são os defensores acérrimos” dessa concorrência e que, com as especificidades das suas regras fiscais, “estão largamente na origem dos circuitos de desagravamento fiscal explorados pelos GAFA nas suas estratégias de fuga fiscal”. E que poderemos assistir a negociações de bastidores para se formarem alianças transitórias que se somarão à concorrência que já existe. Bruxelas, por seu lado, diz que muitas vezes, na procura da unanimidade, o denominador comum que prevalece acaba por ser menor.
Jan Pedersen acredita que “alguns Estados-membros com ‘regimes fiscais preferenciais’ terão provavelmente menos interesse numa mudança que permita à União Europeia neutralizar essas vantagens e criar uma concorrência justa e que, de facto concretize o mercado interno.”
Sampayo Ribeiro pensa que, mais do que Portugal, há outros países que poderão aproveitar o fim da unanimidade. “Quanto mais integrados se tornam os mercados, mais importantes são as vantagens da localização geográfica para a competitividade das empresas”. E para “um país como Portugal, a regra da unanimidade é absolutamente essencial para a criação de políticas públicas que promovam inovação, emprego qualificado e duradouro e assegurem uma adequação do sistema económico português à transformação dos padrões de produção globais”.
A avaliar pelos resultados do Eurobarómetro de 2016, três quartos (75%) dos inquiridos querem uma maior intervenção da União Europeia na luta contra a fraude. Para Jean-Marie Monnier, a fiscalidade pode constituir um dos elementos principais do projecto europeu. O mesmo pensa Sampayo Ribeiro.
A falta de cooperação, entende Monnier, “provocou a intensificação da fuga [fiscal], nomeadamente por causa da emergência dos circuitos de isenção fiscais”. O ponto está na cooperação. As grandes federações do mundo, diz, dando como exemplo os Estados Unidos e o Canadá, “demonstram que não é necessário uniformizar a fiscalidade no interior desses vastos territórios e que os Estados federados podem conservar margens de autonomia relativamente importantes.”
Monnier não tem dúvida de que “na era da globalização, quando as questões que se colocam aos Estados são cada vez mais globais (a transição ambiental, a expansão mundial dos monopólios digitais), a fiscalidade europeia pode oferecer meios de criar novas margens de manobra”.
Para a Comissão Europeia, a maioria qualificada seria a melhor forma de atenuar os efeitos dessa concorrência transfronteira. Para a aprovar, ainda não há unanimidade. Sinal de que o debate ainda só agora recomeçou.