Descentralização e reforma do Estado-administração
Será possível reformar as administrações local, supramunicipal e subnacional sem mexer na administração central do Estado?
A lei n.º 50/2018 de 16 de agosto aprovou o quadro de transferência de competências para as autarquias locais e comunidades intermunicipais (CIM) e a Lei n.º 58/2018 de 21 de agosto criou a Comissão Independente de Descentralização (CID) com a missão de proceder a uma avaliação da organização e funções do Estado, aos níveis subnacional e supramunicipal. No mínimo uma curiosa coincidência. Mas será possível reformar as administrações local, supramunicipal e subnacional sem mexer na administração central do Estado?
O regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR
Estamos em fevereiro de 2019 a preparar o período de programação de fundos estruturais para a próxima década. É preciso evitar que, na medida do possível, estas grandes reformas da administração pública não sejam abordadas e tratadas por critérios de mera conveniência e oportunidade político-eleitorais. De um lado, temos um pacote legislativo de transferência de competências para as autarquias locais que interagem e articulam com as atribuições e competências dos níveis subnacionais e supramunicipais, do outro, temos uma oportunidade única de reforma estrutural da administração pública - administração central, regional e local – devidamente enquadrada pelo programa nacional de reformas e pela programação de fundos até 2030. Se fossemos capazes de articular, no tempo e no espaço, esta reforma estrutural a três dimensões seriamos seguramente mais bem-sucedidos na delimitação e controlo dos respetivos custos e benefícios de contexto.
Agora que, pelas piores razões, se volta a falar de interioridade e desertificação é meu entendimento que a descentralização e a valorização do interior nunca acontecerão se não pegarmos no assunto pelo lado da “política de coordenação e desenvolvimento” levado a cabo pelas CCDR, num registo e num regime que eu aqui designo por “regionalização conservadora ou minimalista”. O objetivo principal seria eleger o nível NUTS II como o lugar central de uma nova racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, para desenhar uma estratégia de governação e articulação multiníveis: de um lado, os municípios e as comunidades intermunicipais (CIM), do outro, os planos de ação regional, o programa nacional de reformas e os programas europeus de coesão.
É certo, existe o risco real de que o governo central use a administração regional como instrumento direto de ação política e de gestão macroeconómica, como uma espécie de guarda avançada das suas políticas públicas de racionalização e ajustamento económico-financeiro em face do elevado volume de dívida pública existente. Por outro lado, existe, também, o risco de a administração local usar as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados e projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.
Se este risco se confirmar, os níveis NUTS II e NUTS III poderão ser transformados numa arena de verdadeira cacofonia territorial, onde freguesias, uniões de freguesias, associação nacional de freguesias, municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, associação nacional de municípios e administração regional irão esgrimir argumentos cruzados em nome dos únicos atores verdadeiramente legitimados, os municípios e o governo central. No sentido de pôr alguma ordem nesta cacofonia territorial, uma hipótese possível é aquela que aqui propomos.
Os Contratos Territoriais CIM
Como sabemos, o país constituiu muito recentemente 23 comunidades intermunicipais (CIM), a maioria delas coincidente com as NUTS III (sub-regiões das NUTS II). Trata-se de um nível de programação, planeamento e implementação de políticas muito relevante para reconsiderar todo o sistema de desenvolvimento do interior. O país tem praticamente em cada capital de distrito um instituto politécnico ou universidade cujas áreas de influência e ação integram as CIM e as NUTS III. Estas instituições precisam urgentemente de refrescar e renovar a sua missão e de ganhar um suplemento de legitimação num tempo histórico de grande exigência para o país.
No mesmo âmbito territorial, o país tem associações empresariais, parques industriais e grupos empresariais que precisam urgentemente de fazer a sua prova de vida, de se recapitalizar e demonstrar que não são meros simulacros empresariais, mas verdadeiros projetos empresariais. A triangulação entre estas três entidades - as comunidades intermunicipais, os institutos politécnicos e universidades e as associações empresariais - pode e deve estar na origem de um “contrato territorial de desenvolvimento” para as CIM e para o próximo período de programação 2020-2030. Para levar a cabo o projeto de desenvolvimento seria criada uma “estrutura de missão” com competências executivas no território da CIM/NUTS III
Nos termos do mesmo contrato de desenvolvimento, os três promotores ficariam “obrigados” à apresentação de uma “proposta de organização e funcionamento da administração pública intermunicipal” e de uma nova “cartografia de bens e serviços comuns” para o território-rede em formação. No mesmo sentido, o governo central apresentaria um quadro legal e financeiro de estímulos para o investimento empresarial, uma via verde para a cooperação e a extensão empresariais vocacionada para o desenvolvimento territorial do interior do país;
Uma nova arquitetura política para os serviços regionais
No contexto descrito, o nível NUTS II seria considerado a sede apropriada para uma nova racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, através da formação de um Conselho Executivo Regional, com a mesma lógica de funcionamento de um conselho de ministros e assente numa nova arquitetura para os serviços regionais, tendo como principais interlocutores sub-regionais as estruturas de missão das CIM. Um conselho de concertação regional completaria este quadro de governação territorial.
Trata-se, em minha opinião, de uma proposta conservadora que vai buscar a sua justificação a uma forma de legitimidade funcional já existente. Mas, obviamente, outras vias existem, baseadas, por exemplo, em procedimentos mais vinculativos de legitimidade político-eleitoral, como são a eleição indireta do presidente do conselho executivo em colégio eleitoral regional ou a sua eleição em sufrágio universal regional. Não foi, porém, aqui essa a opção.
A reforma estrutural da administração central do Estado
Creio que este seria, também, o momento apropriado para fazer a reforma estrutural da administração central do Estado, no quadro do próximo período de programação e numa conjuntura em que estamos obrigados a regressar ao investimento público em infraestruturas e equipamentos para a próxima geração (e também a agenda digital). Assim, na minha opinião, para 2030 torna-se necessário uma agenda política que considere: um acordo de regime interpartidário alargado para duas legislaturas (2019-2028), uma revisão constitucional no quadro da UEM II e da UPE (união política europeia), um programa de reforma estrutural do Estado-administração para duas legislaturas e, por último, mas em simultâneo, um programa nacional de reformas visando o desenvolvimento económico e social para esse horizonte temporal.
Quanto à reforma estrutural do Estado central, o imperativo categórico reporta-se às grandes funções do Estado, a saber:
- O Estado soberano: rever as missões de soberania e a estrutura de poderes soberanos,
- O Estado social: rever os regimes de proteção social na sua aceção mais ampla,
- O Estado fiscal: rever a estrutura dos benefícios e estímulos fiscais,
- O Estado empresarial: rever o programa de PPP e os limites do “perímetro empresarial”,
- O Estado administrativo: rever a administração autónoma e reformar o Estado Local,
- O Estado financeiro: constitucionalizar a responsabilidade fiscal e financeira do Estado.
Estas são as grandes tarefas para o período 2019-2028. Oxalá o crescimento ajude, não obstante o paradoxo verosímil, bem português, de que um crescimento mais elevado possa abrandar ou mesmo adiar a reforma do Estado.
Notas Finais
Em primeiro lugar, importa não trocar competitividade por coesão, sob pena de ficarmos todos a perder. O capital de queixa do argumento coesão pode render alguns votos, mas é por pouco tempo. O problema é mesmo esse, as “rendas de situação” por via da coesão são mais fáceis de conseguir do que por via da competitividade.
Em segundo lugar, falta uma reflexão aprofundada sobre a “transformação digital do Estado-administração” e seu impacto sobre a descentralização/regionalização.
Em terceiro lugar, falta adequar a representatividade político-eleitoral à nova configuração territorial e à sua transformação digital.
Em quarto lugar, não devemos recusar, se necessário, uma revisão constitucional que considere algumas “regras de oiro” em matéria de estabilidade orçamental, carga fiscal e esforço de perequação inter-regional.
Por último, muito para lá da disputa entre competitividade e coesão, os caminhos da prosperidade estarão abertos para aqueles que melhor compreenderem e anteciparem o paradigma da rede e os seus paradoxos, a economia digital e a turbulência nas cadeias de valor, as economias de aglomeração e dispersão e a arte da composição dos territórios-rede.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico