Erik Satie, Patti Smith e David Bowie juntos no ballet punk de Michael Clark

Figura rebelde e revolucionária da dança britânica, o coreógrafo Michael Clark faz as honras de encerramento da nona edição do festival GUIdance com o espectáculo to a simple, rock ’n’ roll . . . song, em estreia nacional.

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Michael Clark chega finalmente a Portugal com uma peça de repertório: to a simple, rock ’n’ roll... song DR

Durante os anos 80, o coreógrafo e bailarino escocês Michael Clark (n. 1962) andou a fazer uma série de coisas que não passariam pela cabeça da maior parte dos seus colegas de profissão. Apresentou peças em clubes gay e em discotecas, dançou em videoclipes de bandas pós-punk como os Scritti Politti, fez um dueto a tresandar a sexo, numa cama, com o coreógrafo Stephen Petronio. Virou do avesso o palco do Sadler’s Wells, em Londres, com o colossal I am Curious, Orange, que contava com a participação ao vivo da banda The Fall, dançou Heroin dos Velvet Underground numa galeria de arte, vestido com um fato adornado de seringas, e chegou a adormecer em palco de tão pedrado que estava com heroína.

Não faltam histórias sumarentas e desregradas na carreira de Michael Clark. Mas nada disto teria importância se não estivéssemos a falar de um criador fora de série que revolucionou a dança britânica na teoria e na prática, colocando em diálogo o ballet clássico, a moda, as artes visuais e o circuito underground da música, cruzamentos que trouxeram novos públicos para a dança. Nos seus espectáculos juntavam-se a burguesia do ballet, punks, cabeleireiras, designers de moda, pessoas que trabalhavam em discotecas. Era uma dança permeável à cultura pop, à energia do seu tempo.

Depois de uma retirada na década de 90 para resolver o vício de heroína e metadona, esta wild child da dança britânica voltou aos palcos. Michael Clark continua aí, agora mais sóbrio e mais sossegado, agora mais coreógrafo do que bailarino – e a mais recente peça que criou para a sua companhia, to a simple, rock ’n’ roll... song, faz este sábado as honras de encerramento da nona edição do festival GUIdance, subindo às 21h30 ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.

Este espectáculo, que se estreou em Outubro de 2016 num esgotadíssimo Barbican Centre, em Londres, está composto em três actos. Cada um deles tem como motor, respectivamente, a música de Erik Satie (1866-1925), de Patti Smith e de David Bowie (1947-2016). O primeiro acto, iluminado por trabalhos inspirados em Satie de mentores e colegas de Clark, entre eles Yvonne Rainer e Merce Cunningham (é uma aula de minimalismo austero e hipnótico, mas com batimento cardíaco), foi germinado a partir de uma residência do coreógrafo e de alguns bailarinos da sua companhia em Serralves, nos inícios de 2016, que na altura resultou em duas breves apresentações públicas, em versão laboratorial. Em Guimarães a história será outra: Michael Clark apresenta pela primeira vez em Portugal uma peça do seu repertório.

Se é óbvio que os loucos anos 80 ficaram para trás, juntamente com os dildos, o vestuário de rabos à mostra e outros figurinos irrepetíveis criados por Leigh Bowery e Trojan (outras aves raras que colaboraram com Clark e como ele provocaram mais uns quantos abalos sísmicos na cena cultural britânica), também é certo que o ADN da linguagem coreográfica de Michael Clark continua o mesmo, acompanhado por um trabalho primoroso de figurinos, co-criados com o designer de moda Stevie Stewart, dos BodyMap, também eles filhos dos anos 80. Em to a simple, rock ’n’ roll... song, o formalismo e o rigor do ballet aparecem aliados a uma vitalidade, uma jovialidade e um entusiasmo libertário herdeiro do punk, evidentes no segundo e no terceiro acto em coreografias tão pontilhistas e disciplinadas quanto frenéticas e pelvicamente sinuosas. Sobre a segunda parte da peça, em que se ouve a canção Land, do Horses (1975) de Patti Smith, Jarvis Cocker, um dos muitos músicos que já colaboraram com Clark, fez um comentário certeiro: “Isto é rock’n’roll, sim, mas não como o conhecemos.”

O sexo da dança

Na adolescência, a música rock, mais concretamente o punk e o pós-punk, foi uma forma de Michael Clark se libertar da “disciplina muito rígida” da Royal Ballet School, onde começou a dar os primeiros passos sérios na dança. “Fui ter ao punk através de uma entrevista dos Sex Pistols na televisão e interessei-me logo pela teatralidade deles. Entretanto arranjei uma tia fictícia para escrever cartas falsas à escola a pedir autorização para eu sair ao fim-de-semana; era assim que conseguia ir a concertos”, contou-nos o coreógrafo quando o entrevistámos a propósito da sua passagem por Serralves. “Aquilo era o contrário do meu treino. Tinha quase uma identidade dupla.” Ainda “demorou algum tempo” até perceber como conjugar o ballet clássico e a música de que gostava. Teve aulas com Merce Cunningham e John Cage, mas foi com a coreógrafa americana Karole Armitage, conhecida como a “bailarina punk”, que conseguiu começar a traçar esse caminho. Ao trabalhar com os The Wire e os The Fall, tudo ficou mais claro na sua cabeça. “A música pode ter uma influência muito forte na atmosfera de um espectáculo. É isso que adoro. Nós ouvimos antes de ver, é algo muito poderoso, mesmo para um coreógrafo.”

Também a pulsão sexual está sempre bem latejante nas suas coreografias. “Acho que o sexo tem sido negado na dança, no processo de tentar torná-la uma forma de arte respeitável. Mas o sexo e a dança estão tão ligados”, disse-nos ainda o coreógrafo. “O ímpeto sexual faz parte da tua existência, portanto negar isso não é bom, é reprimir algo.” Essa vibração contamina o terceiro acto, que conta com várias músicas de David Bowie, incluindo do último álbum, Blackstar (2016), lançado dois dias antes da sua morte. Não há dúvidas de que se trata de uma sentida homenagem ao músico inglês, que ganha uma dimensão ainda mais especial com o desenho de luz de Charles Atlas, cúmplice de longa data de Clark.

to a simple, rock ’n’ roll... song não será com certeza um dos trabalhos mais memoráveis do coreógrafo escocês (na verdade, quase parece um best of), mas mostra o quão poderoso pode ser um espectáculo de dança nutrido a música rock. Michael Clark sabe fazer isso como ninguém – sim, é possível dançar a distorção de uma guitarra.

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