De que precisamos? De objetos de desejo político
Esses objectos de desejo político devem ser claros, sucintos e concretos — porque só assim se mobilizam as pessoas para os conquistar.
Se olharmos para as sondagens à população europeia, vemos que grandes maiorias em todos os Estados-membros (incluindo naqueles de retórica anti-europeia, como a Hungria e a Polónia) são favoráveis ao projeto europeu e desejam permanecer nele. O problema é: para quê? Para que serve a União Europeia? Que dá ela aos seus cidadãos? Onde estão os bens públicos europeus? Alguns tornaram-se quase transparentes de tão banais — pouca gente se lembra que são as proteções ambientais e de consumo da UE que estabelecem os mínimos para coisas como a limpeza de praias ou a segurança de alimentos ou brinquedos. Outros parecem tão distantes e inatingíveis que não mobilizam as pessoas, pelo menos enquanto estas não acreditarem que a UE está aqui para durar. Quando se diz a alguém que devemos lutar por um subsídio de desemprego à escala da União Europeia, é natural que essa pessoa se pergunte se a UE ainda vai estar cá daqui a cinco ou dez anos para garantir o bem público por que é suposto lutarmos.
Mas a situação atual traz, na sua indefinição, algumas tendências ainda só em filigrana que é possível descortinar e destacar, para que entendamos que escolhas temos. Em primeiro lugar, percebeu-se nos últimos anos que a União Europeia é mais resiliente do que a maioria dos eurocéticos pensava — por esta altura, o euro já deveria ter acabado, mas os anti-euristas ainda não conseguiram explicar como se sai do euro. Em segundo lugar, percebeu-se que se a União Europeia acabar os únicos a beneficiar com isso serão os fascistas e xenófobos, o Sr. Trump e o Sr. Putin. (Do outro lado, alguém como o ex-presidente do Uruguai José Mujica, diz-nos que “mesmo com todos os seus defeitos, oxalá tiveramos uma União Europeia na América Latina”. Quando Trump e Putin desejam o fim da UE e Mujica deseja a sua continuidade, talvez o mundo nos esteja a dizer qualquer coisa.) Em terceiro lugar, e por consequência, a escolha a fazer é como aplicar as nossas energias a melhorar a União Europeia, em vez de aceitar o derrotismo de esperar pelo seu fim. Em quarto lugar, há que reconhecer que aqueles que poderiam lutar para melhorar a Europa se encontram fragmentados e desorientados pelo sectarismo e pelo “narcisismo das pequenas diferenças”. Que fazer, então?
É aí que nos pode ser útil uma estratégia que já deu frutos no passado, na construção do estado social e do estado de direito. No século XIX, na Grã-Bretanha, um movimento trabalhista chamado Cartismo (não confundir com o movimento liberal português do mesmo nome) encontrou o seu ponto focal numa Carta Popular que listava as exigências e metas dos operários britânicos nas suas lutas políticas: entre esses objetivos estavam coisas como o sufrágio universal e, mais tarde, as oito horas máximas de trabalho. Pessoas de partidos diferentes, ou de partido nenhum, organizadas individual ou coletivamente, poderiam subscrever os princípios da Carta Popular e assim encontrar unidade na ação. Todos os objetivos dos cartistas acabaram por, a prazo, ser alcançados. Mais de um século depois, a estratégia foi repetida pelos dissidentes checoslovacos signatários da Carta 77, que acabou também por conquistar — em apenas doze anos — todos os seus objetivos democráticos e de direitos fundamentais.
Há alguns anos que venho defendendo que a Europa precisa de uma estratégia semelhante para a nova década, em torno daquilo a que chamo a Carta 2020. Esta carta deveria ter metas e objetivos em termos de bens públicos à escala europeia que precisamos de ver conquistados e implementados. Só se mobiliza uma população, seja à escala local, nacional ou continental, através daquilo a que chamo “objetos de desejo político”.
Os europeus — não a Europa das instituições ou dos governos nacionais, mas os europeus — precisam de encontrar os seus “objetos de desejo político”. Eles podem ser de ordem constitucional, como o estabelecimento uma democracia europeia em que todos os países são estados de direitos e todos os 500 milhões de cidadãos têm acesso igual a todos os direitos na Carta de Direitos Fundamentais da UE. Podem ser sociais, como um plano para a erradicação da pobreza infantil, uma garantia de emprego ou um dividendo universal de cidadania. Podem ser ambientais, como o Novo Contrato Verde de investimentos públicos contra as alterações climáticas de que falei nesta coluna há semanas. Mas devem ser claros, sucintos e concretos — porque só assim se mobilizam as pessoas para os conquistar, e só conquistando esses bens públicos se ganha o encorajamento e a solidariedade necessárias para conseguir mais.
Hoje, pela primeira vez, um grupo de quatro dezenas de pensadores e ativistas — dos filósofos Etienne Balibar, Nadia Urbinati e Daniel Inerarity, ao cientista político Richard Bellamy, que será o anfitrião, e à fundadora da associação Agora Europa, Caterina di Fazio, que generosamente pegou na minha ideia original e sobre ela trabalhou — começarão a redigir em Florença um projeto de Carta 2020. Trabalharemos para fazer aparecer carne e ossos ao espírito desta ideia, concentrando-nos em bens públicos “disponíveis para todos de forma a que não seja necessário competir por eles e a que ninguém deles seja excluído". Se tudo correr bem, daqui a um mês, em Bruxelas, será apresentado o resultado. E eu prometo ir-vos aqui dando conta do processo. Porque não é tarde para salvar a Europa, mas é urgente saber para quê.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico