Pousei o livro na mesa-de-cabeceira mas, antes de desligar o candeeiro, percorri os quatro cantos do quarto, naquela admiração estranha de quem olha lentamente para as coisas que possuiu e se pergunta em que momento, ao certo, necessitou de tudo aquilo.
Convém esclarecer que no livro que lia não se constroem alegorias sobre a sociedade materialista: Saramago apenas rasga a Península Ibérica do resto do continente e a história desenrola-se a partir desse insólito. Mas o que é facto é que a Ibéria, do ponto de vista tectónico, nem sempre esteve colada à Europa. Os geólogos classificaram-na como microplaca porque as restantes são de maiores dimensões e, por vezes, nem sequer coincidem com as fronteiras geográficas. Mas tanto as placas grandes como as pequenas são peças flutuantes de um puzzle que, na gíria científica, se chama "crusta" e que é tão-somente uma película rochosa equiparável à casca de um pêssego. São jangadas de pedra, definitivamente, e foi sobre elas que a vida floresceu e assim se manteve, muito bem por sinal.
Diz-se, em nutrição, que é na casca das frutas que se concentram as “fibras” — e tal não poderia estar mais correcto, pelo menos do ponto de vista planetário. Porque é cá em cima que se encontram todos os recursos necessários ao bom funcionamento da humanidade (até porque lá abaixo nunca ninguém conseguiu ir, a não ser nos filmes). E na impossibilidade momentânea de ir mais além, comprometemo-nos a estudar muito bem as reservas da nossa "crusta", aplaudindo qualquer campanha de prospecção que anuncie resultados promissores. Enquanto geólogo, folgo em saber que assim é e que todas as alternativas são discutidas a nível global. Mas, ainda globalmente falando, pergunto: até que ponto necessitaríamos de tudo aquilo que exploramos?
Numa entrevista recente, Sir David Attenborough falou do desperdício, apelando a que se saiba viver apenas dentro da esfera das possibilidades, sem se gastar mais do que é preciso, e concentrando esforços no que verdadeiramente importa. Num breve exercício de pensamento, imaginando que, neste preciso momento, alegoricamente falando, se esgotavam todos os recursos do planeta (e refiro-me a todos, desde o grama de minério à gota de petróleo), talvez aquilo que nos restasse fossem somente os objectos do nosso consumismo — tal qual um amontoado de coisas sem sentido prático. E é somente um o planeta que temos. Redondo, azul e finito. E por muito que os antigos — e os recentes — colonizadores teimem, a Terra não pertence a ninguém, somos nós que lhe pertencemos.
Porventura ter-me-ei esquecido de falar sobre poluição, o novo desenvolvimento sustentável, a escassez de água potável e a questão dos três "erres". Certamente terei divagado um pouco, misturado alguns assuntos, mas este pensamento também me surgiu pouco antes de adormecer, aquela altura tramada em que todas as ideias nos assaltam. Em suma, talvez nos falte compreender melhor quais são “as matérias-primas da existência”. E digo-o em toda a extensão da expressão. Ainda sem catastrofismos e ainda sobre jangadas — mas sobre aquelas que construímos com as nossas vidas —, não queiramos correr o risco de enchê-las com muitas coisas. Se calhar a nossa jangada só flutua por ser feita também de pedra.