Um supergrupo flutuante chamado Montanhas Azuis é lançado sexta-feira
Marco Franco, Norberto Lobo e Bruno Pernadas são os três Montanhas Azuis. Uma constelação que partiu da exploração de sintetizadores e que inventou um mundo só seu. Ilha de Plástico, o álbum, é lançado esta sexta-feira na Culturgest, em Lisboa.
No verso da nota de um dólar, há uma figura que há muito instiga as mais variadas teorias da conspiração: o chamado Olho da Providência ou Olho que Tudo Vê. Ou seja, um olho colocado no topo de uma pirâmide, luminoso ou rodeado de raios de sol, que, diz-se, representa o olhar de Deus observando a Humanidade. Muito antes das notas de dólar, no entanto, o olho pertencia já ao deus Hórus e à mitologia egípcia. Mas a pirâmide ou (noutras ocasiões) o triângulo havia de tornar-se também símbolo religioso, numa alusão à Santíssima Trindade do cristianismo, tendo sido também adoptado pela bruxaria e pela maçonaria. No mundo esotérico, o triângulo remete ainda para harmonia, perfeição e sabedoria; início, meio e fim; corpo, alma e espírito.
Não é fácil perscrutar a eventual origem de um interesse particular de Marco Franco e Norberto Lobo por estas figuras geométricas, mas o baterista entretanto revelado como pianista — com a edição do belíssimo álbum a solo Mudra —, fala de ambos terem “uma espécie de [obsessão] feng shui ou fetiche com formas triangulares”. É esse pormenor aparentemente acidental a determinar, em parte, o desenho do colectivo Montanhas Azuis. Se tudo começou a dois, enquanto Marco arrumava a bateria e Norberto emalava a guitarra, para se dedicarem à exploração de sintetizadores, as experiências esporádicas que foram acumulando ao longo de alguns anos insistiam em mostrar-lhes que o duo era demasiado curto. Talvez por uma questão de feng shui. Ou de intuição musical.
A partir do momento em que a imagem de uma pirâmide ou de uma montanha em trio se foi aclarando nas suas cabeças, não tardaram também a eleger Bruno Pernadas para assumir o terceiro vértice da triangulação. Em parte porque, sendo um guitarrista, era sobretudo um multi-instrumentista, alguém em quem o desejo de deserção do instrumento original poderia ter um efeito semelhante, sem implicar uma apoplexia criativa.
“Não contratámos o Bruno — e isto nem sequer é um contrato [risos] — para nada em concreto”, relata Marco. “Dissemos-lhe apenas que gostávamos muito que ele tocasse connosco e que fizéssemos um trio. Sabíamos bem que, além de compositor, arranjador e produtor, o Bruno toca vários instrumentos e oferece uma gama muito vasta de possibilidades. Tínhamos isso como segurança. Não fizemos sessões para experimentar e ver se funcionava — já sabíamos que ia funcionar.”
A informalidade natural em Marco e Norberto levou a que não explicassem exactamente a Pernadas o percurso que já tinham avançado a dois e a não verbalizar a expectativa em que se juntasse ao pequeno ensemble de sintetizadores e manipulação sonora. “Não havia nada em concreto e eu nem sabia que instrumentação se ia utilizar”, lembra Pernadas ao Ípsilon. “Como levei guitarra, acabou por entrar também na banda, mas se não tivesse lado se calhar teria ficado só com sintetizadores.” Claro que a guitarra de Pernadas em Montanhas Azuis faz-se ouvir com uma sonoridade muito particular e discreta — “são quase pequenos candeeiros que se acendem e se apagam ao longo da música”, descreve o próprio. “Até porque acho que nenhum instrumento aqui tem uma imposição em relação ao que se está a passar.”
Ainda assim, será uma guitarra menos dissimulada do que aquela que supostamente ouvimos a Norberto Lobo. O homem que nos habituámos a ouvir extrair exercícios das seis cordas feitos de uma perícia técnica ao serviço de uma arrebatadora poesia musical, capaz de evocar Ayrton Senna ou Lhasa de Sela nos títulos das suas canções instrumentais, começou por abordar uma “guitarra toda processada” no tempo do duo com Marco Franco, e acabou por gravar ainda o seu primeiro instrumento em Ilha de Plástico — o álbum de estreia, lançado esta sexta-feira, data assinalada com um concerto na Culturgest, em Lisboa. Simplesmente “ninguém adivinha que aquilo é uma guitarra”, avisa Norberto, uma vez que se encontra ligada a “um pedal do Pernadas que fala japonês”.
Norberto argumenta, aliás, que não houve propriamente uma deliberação formal dos três em montarem “uma banda de synths”. Não existiu nenhum concílio, nenhuma votação de braço no ar, nenhum decreto lavrado e assinado pelos três, nenhuma decisão com o peso da palavra irrevogável. Aquilo que houve foi a habitual resposta prática àquilo que os temas pediam. E aconteceu que pediram, com insistência e de forma recorrente, o recurso a sons que só os sintetizadores podem satisfazer. “No meu caso pessoal”, diz ainda Norberto, “passou muito por reduzir a paleta a poucos sons. E se um som ficava bem em quase todas as músicas, então usava esse. Foi mais responder àquilo que as canções do Marco pediam. Mais do que estar a pensar se ia tocar gongo ou sousafone.”
Gongo ou sousafone são os exemplos avulsos que afloram ao discurso de Norberto. Podiam ser quaisquer outros. Mas “as canções do Marco” nada tem de falta de rigor. De acordo com a sucinta descrição de Norberto, o processo de composição de Ilha de Plástico respeitou o seguinte modelo: “Sempre que tínhamos um ensaio, o Marco aparecia com 15 temas novos e nós tínhamos de escolher três para trabalhar.” Ou seja, todo o material tem origem em Marco Franco, embora esses rastilhos iniciais sejam depois arranjados a três e acrescentadas novas melodias. “Essa é uma questão que diria supérflua”, reage Marco. “E passo a defender-me: tenho, de facto, uma compulsividade mais aguda — e não grave, espero [risos]. Sempre trouxe mais temas para os ensaios, mas essa é uma prática que me é familiar. Talvez tenha uma mala de viagem mais carregada. Só que depois tudo se transforma e deixa de ser meu, passa a ser de um colectivo.”
Esse ideal de colectivo é alimentado, desde logo, pela admiração artística mútua e pela escolha de Marco Franco delegar decisões nos outros dois músicos. Nomeadamente no que diz respeito aos títulos dos nove temas de Ilha de Plástico (Nuvem de porcelana, Sururu, Flor de montanha, Dezanove acordes ou Coral de recife) quase todos saídos da imaginação de Norberto.
Futurismo, botânica, biologia
Algures nos mares que nos rodeiam, encontra-se a Ilha de Lixo do Pacífico (há uma outra no Atlântico), uma formação de plástico flutuante 17 vezes maior do que o território português. Um lembrete permanente dos desperdícios da população mundial e do consumismo desenfreado que toma conta do planeta sem olhar à catástrofe ambiental. Ilha de Plástico, à excepção da característica flutuante que partilhará com essa acumulação de lixo à deriva, pouco terá que se relacione com tal imagem — mesmo que imaginemos a melancolia destas paisagens sonoras como podendo, de forma muito vaga, remeter para esse cenário. Ainda assim, Marco Franco confessa imaginar esta música como banda sonora para “um filme de animação com algum futurismo, botânica e biologia”.
Marco Franco acaba por ser também o autor da capa de Ilha de Plástico. Quando a hipótese de qualquer um dos três assumir a imagem foi equacionada, a escolha acabou por recair sobre um exemplar das artes visuais a que o músico se tem igualmente dedicados nos últimos meses. E não seria mesmo fácil encontrar correspondência mais acertada com a amplidão que se sente na música criada pelos três — aérea, planante, meditativa, como que desligada dos comezinhos problemas terrenos que viralizam o dia-a-dia. A música de Montanhas Azuis parece escapar a toda a imundície quotidiana e habitar suspensa, mesmo que presa por fios, algures num céu decorado com nuvens fantasiosas — de porcelana, como sugere o título da canção.
Estas nove miniaturas (designação certeira de Marco Franco para as pequenas e preciosas canções do grupo) podem expandir-se quase sem fim em concerto — “É tipo Grateful Dead”, ameaça Norberto, “nunca sabemos bem quanto tempo irá durar”. Mas em disco são realmente pequenas ilhas que tanto podem atirar-nos para o lado mais ambiental dos Air quanto para o dramatismo das bandas sonoras do cinema italiano dos anos 70 (da mesma sofisticação pegajosa que encontrávamos no primeiro álbum dos Balla), tanto podem colar-nos imagens fugazes de animação japonesa ou música rural chinesa quanto aproximar-nos da música clássica indiana ou do minimalismo que Marco tem explorado no piano. Ilha de plástico e Faz faz, no arranque, são dois magníficos exemplos do cume a que podem chegar tais micro-devaneios a três.
A sugestão de imagens causada pelos temas de Ilha de Plástico é tão óbvia e intensa que, para o concerto da Culturgest, os três músicos surgirão em palco acompanhados pelo trabalho visual desenvolvido pelo videasta Pedro Maia. Na ausência de uma narrativa para os nove temas, dizem-se curiosos por perceber que tipo de resposta à música poderá acontecer em palco e de que forma também esse factor se irá intrometer nos caminhos melódicos que — embora preparados e ensaiados — não são definitivos. E por perceber se haverá uma ligação mais estreita às montanhas azuis idealizadas por Marco Franco, ao clássico animé Evangelion citado por Norberto Lobo ou à ideia mais abstracta de uma música ausente das cidades e sintonizada com a natureza que imagina Bruno Pernadas.
Um dos traços mais característicos e ricos da música do trio, acredita Pernadas, é a particular conjunção de “haver tão pouco som e tanto som ao mesmo tempo”. O que resulta numa sucessão de melodias que nunca disputam a atenção nem entram em conflito; antes dão lugar umas às outras num constante gesto de maravilhamento. Resultado daquilo a que Marco tem a ousadia de chamar “milagre”, traduzível pelo encontro de três pessoas desaguar numa música com uma identidade tão singular. Um milagre curto e encantador. Como se, de cada vez, vislumbrássemos qualquer coisa única, demasiado etérea para se agarrar, demasiado fugaz para se fixar.