O silêncio do deserto, Twin Peaks, uma cultura em decadência

Bradford Cox, vocalista dos Deerhunter, tem o seu cão Faulkner a dormitar no peito enquanto nos fala do magnífico e assombrado Why Hasn't Everything Already Disappeared. "O que poderia ser melhor que isto?", pergunta ele.

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Bradford Cox está feliz. “Estou deitado no sofá com o meu cão. Está a descansar com o focinho no meu peito. Alternamos sonecas o dia todo e, à noite, leio sobre música, ouço discos, pinto. O que poderia ser melhor que isto?”. Eis Bradford Cox, contente da vida, a falar com o Ípsilon sobre o oitavo álbum da banda texana nascida em Atlanta na alvorada do século XXI, magnífico álbum assombrado, pré ou pós-apocalipse, com título, no mínimo, pouco optimista: Why Hasn’t Everything Already Disappeared?. “Há sombras a pairar sobre o mundo, no geral, e também pessoalmente. O facto de estar aqui deitado com o meu cão não quer dizer que as coisas me estejam a correr bem financeiramente. Muito simplesmente, não há dinheiro”, dirá mais tarde na entrevista.

Não há ali contradição. Bradford Cox, que cada vez mais “é” os Deerhunter, está feliz com a vida que tem, com o cão a seu lado, com a casa recheada de livros e discos e demais coisas respigadas aqui e ali, com os pais e irmãos e sobrinhos por perto, mas Bradford Cox não está optimista. “Há algo de singularmente tóxico no momento actual, um novo odor químico que nunca cheirei antes. É como plástico a arder”, declarava recentemente em entrevista ao Guardian. Perguntaram-lhe se a culpa era do presidente do seu país, Donald Trump, mas Bradford Cox recusou essa saída fácil. “Como é que se pode culpar uma pessoa apenas?”, respondeu. “Existe um narcisismo generalizado, uma sensação generalizada de insignificância, na verdade. E uma ânsia de sintetizar algum tipo de significado das versões de nós próprios que criamos e promovemos”.

Why Hasn’t Everything Already Disappeared?, que os Deerhunter apresentarão no próximo Paredes de Coura, dia 16 de Agosto, não é um álbum de dedos acusadores, de nós contra eles, não é álbum combate – é mais profundo e, por isso mesmo, mais interessante e mais perturbador. “Gosto de ardósias em branco, gosto de papel em branco. Estão cheios de possibilidades”, diz-nos então, cão chamado Faulkner dormitando no seu peito – os escritores sulistas do American Gothic são uma das suas grandes referências. Fala do papel em branco quando apontamos que cada álbum dos Deerhunter, do tumultuoso Cryptograms (2007) ao meticuloso Halcyon Digest (2010), do negro de Monomania (2013) às pulsões pop de Fading Frontier (2015), parece habitar um espaço único, sem que haja verdadeiramente uma linha evolutiva a ligar o avanço da discografia.

“Vejo realmente cada álbum como uma folha de papel em branco. Tenho, na verdade, grande apreço por folhas de papel. Sou um acumulador compulsivo", conta o vocalista dos Deerhunter. “Estou sempre à procura de papel velho que não tenha sido usado, mas que tenha envelhecido. Julgo que o mesmo acontece com os nossos álbuns. Não gosto de começar por um papel em branco impoluto. Gosto de começar com um pedaço de papel que já esteja um pouco manchado, um papel muito velho, mas nunca usado desde que foi produzido”. Why Hasn’t Everything Already Disappeared? não nasceu realmente de uma impoluta e novíssima folha em branco. É um álbum em que, em determinados momentos, o passado se faz presente (o espírito de Ray Davies, dos Kinks, a insinuar-se, a electrónica ambiental da década de 1980 e a música de base minimalista evocando uma estranha sensação de serenidade, ou de suspensão no tempo), não como ferramenta nostálgica, mas para acentuar a inquietante melancolia que o atravessa, mesmo nos momentos musicalmente mais luminosos – “condenados, dançamos de sorriso nos lábios”, escrevíamos na crítica ao álbum publicada na edição anterior do Ípsilon.

O perturbador silêncio do deserto

“Estamos à espera que o deserto tenha determinados sons, como o do vento atravessando aquela natureza peculiar, mas o que achei perturbador é que o deserto é todo ele silêncio. Isso foi uma grande influência em mim”. O início das gravações de Why Hasn’t Everything Already Disappeared? aconteceu em Marfa, pequena localidade texana de dois mil habitantes no deserto de Chihuahua, célebre pela comunidade artística que acolhe – o álbum seria depois terminado em estúdios em Los Angeles e Atlanta. Marfa foi uma marca que surgiu acidentalmente no velho papel em branco de Bradford Cox. O vocalista tinha ali trabalhado com a galesa Cate Le Bon numa residência e aquilo que sentiu fê-lo querer regressar (e Cate Le Bon voltou também, enquanto produtora, bem como o seu companheiro nos DRINKS, Tim Presley, que também conhecemos dos White Fence e pelo álbuns gravados com Ty Segall).

O deserto então. “Esperava o uivo de um som desolado, mas não há som. Não há eco, porque não nada em que o som possa ecoar. É um som morto, um não-som. Não estou certo que isso tenha influenciado o som do álbum, mas influenciou a forma como o pensava”, explica Bradford Cox. “Para mim, o vento, os sons naturais, são como que uma zona cinzenta entre o silêncio e o ruído, e senti a experiência no deserto como sendo a preto e branco. Completamente silencioso, por contraponto com todo o ruído, ou seja, com a música que estávamos a criar”. No deserto, entre esse nada que surpreendeu Cox e a vida sonora que ia germinando no estúdio, os Deerhunter (formados, além do vocalista, pelo guitarrista Lockett Pundt, o baixista Josh McKay, o teclista Javier Morales e o baterista Moses Archuleta) foram desenhando este álbum habitado por vidas de trabalho a desaparecerem no tempo, violência crescente e sem sentido, nuvens tóxicas de cor laranja, gente em fuga não se sabe de quê nem para onde, estradas secundárias onde nos esperam guardas fronteiriços ameaçadores.

Imagens esquivas, estranhas, enquanto o harpsichord toca o seu som metálico, enquanto as marimbas desenham movimentos circulares, enquanto guitarras acústicas convivem com baterias de som cru e sintetizadores amparam ritmos de uma dança feliz eivada de uma tristeza indefinível. “Viste o Twin Peaks?”, irrompe Bradford Cox. “Foi uma grande influência no disco. Aquele último episódio em que surge a pergunta ‘em que ano estamos?’. Como espectador de um filme ou leitor de um romance, a sensação enigmática de distorção no tempo é a minha preferida. É muito mais perturbador que violência gráfica ou algo de teor sexual explícito”.

Why Hasn’t Everything Already Disappeared? pode ser, portanto, o presente, quando o caos, o colapso, uma mudança inevitável, porventura trágica, assoma no horizonte. Pode ser o momento depois, depois desse caos, quando a tragédia já caiu sobre nós e, algures, alguém pergunta como é que, depois de tudo isto, a realidade teima ainda em existir. Mas isso, na verdade, já foi há muito tempo. Para Bradford Cox, as duas semanas passadas desde que o disco foi editado, os meses passados desde que a banda o finalizou, já lhe sabem a dois anos.

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É o oitavo álbum da banda texana nascida em Atlanta, magnífico álbum assombrado, pré ou pós-apocalipse, com título pouco optimista: Why Hasn’t Everything Already Disappeared?

Tudo corre rápido demais, nada se fixa na memória. Sentimos e esquecemos. “What happens to people? They fade out of view”, ouvimos em What happens to people. Com os discos, lamenta Bradford Cox, acontece o mesmo. “Aqui está um álbum de que muita gente parece gostar a sério, milhões de pessoas ouviram as canções no Spotify e nessas tretas, mas agora nem conseguimos entrar nas tabelas de vendas, o que é bizarro. As Raincoats são uma das minhas bandas preferidas e é injusto que nunca tenham tido a atenção que sempre mereceram. O bizarro é que, no nosso caso, recebemos essa atenção e, ainda assim, não fazemos dinheiro nenhum”. Bradford Cox está a queixar-se, mas não se está a queixar verdadeiramente. Está a constatar. “A opinião popular tem valor e detesto aquela atitude de julgar que a maioria das pessoas são estúpidas. É muito arrogante e não é realista. Eu não sou mais esperto que o meu vizinho. Acontece que pertenço a uma cultura [a do rock’n’roll] que está em declínio”. Não demorará muito até que alargue a consideração. “Não há zeitgeist, não há nenhum movimento cultural que seja excitante, que esteja a atrair pessoas, que as faça querer ser parte dessa música, dessa cultura. É isso que acho desapontante”.

É por isso que ele, o músico apaixonado pela música popular urbana que, quando em digressão, se mata a trabalhar – “não há drogas, não há sexo, não há álcool, nada dessa mitologia rock’n’roll, a maior parte do tempo é como qualquer trabalho de electricista, coroada com a recompensa da performance” -, confessa já não se preocupar com o “sucesso ou fracasso" dos seus álbuns. “A minha sorte, e a minha felicidade, têm que existir em separado disso”.

Bradford Cox viu as sombras no horizonte, sentiu um odor tóxico como nunca antes cheirara, deparou-se com o nada no deserto de Marfa e fez um álbum sobre isso. Um clássico entusiasmante, deliciosamente bem montado, perturbador, dizemos nós. Ele? “Gostaria de ver mais interacção, gostaria de ver mais arte, mas não é muito atraente ser artista nos dias de hoje”. Não é?, insistimos. “Não”, responde com reticências em suspenso, enquanto se ouve o som de uma chamada a chegar. “Desculpe, mas, bem…, tenho que atender a próxima entrevista”, despede-se, deitado no sofá, Faulkner a dormitar no seu peito. Bradford Cox está feliz.

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