É fácil bater na polícia
Não encontrei um padrão que me permita catalogar profissões, grupos de pessoas ou bairros com a etiqueta fulminante do racismo. Por isso, “ser Jamaica” está certo. Mas “ser polícia” também está.
“Bófia de merda, eu a ti vou-te chinar o pescoço” – estas foram as palavras à chegada de um polícia momentos antes de levar uma facada. Um pequeno momento de hesitação e acabou na urgência do hospital. Este caso verdadeiro é só um exemplo. Quem anda nos tribunais sabe que incidentes destes se repetem às centenas e raramente fazem a notícia do dia. Estamos formatados para culpar o polícia que pisa o risco; não para sermos solidários com o polícia que sofre violência.
Há situações em que o polícia não tem muitas opções. Se actua com diplomacia, arrisca levar uns murros ou pior. Se é mais prevenido e usa a força, o mais certo é acabar nas bocas do mundo acusado de brutalidade. Duma maneira ou doutra, a probabilidade do polícia apanhar é grande.
Na manhã de 20 de Janeiro, no bairro da Jamaica, alguém em aflição pediu ajuda à PSP do Seixal. A operação acabou mal, com pancadaria entre polícias e moradores. A PSP disse que foi recebida à pedrada e usou a força para travar moradores violentos que queriam impedir uma detenção. Outros disseram que houve racismo e brutalidade policial. Pode ter sido uma coisa ou outra, ou até um pouco de tudo. Ninguém sério está em condições de atribuir as culpas, antes de concluídos os inquéritos abertos pelo Ministério Público e PSP.
Mas a polícia começou logo a levar. Nas televisões só vimos a segunda parte do filme e fixámo-nos mais nos polícias que batiam do que nos polícias que levavam. O ministro da Administração Interna proclamou rapidamente “Jamaica somos todos nós”. Claro que somos Jamaica. Já éramos, aliás. O grave e indigno problema social que ali existe é muito antigo. A Mamadou Ba, da associação SOS Racismo e assessor partidário, bastou-lhe ver pessoas negras envolvidas para sentenciar que a “bosta de bófia” foi racista. Nem reparou que excesso de força e racismo são coisas distintas. O Presidente Marcelo também não perdeu tempo a ir ao bairro distribuir afectos. Ao que parece, fez até umas selfies com arguidos que se envolveram na pancadaria. Não foi à esquadra da PSP do Seixal ver o polícia que levou uma pedrada na boca. Isso não. Os polícias não gostaram. Acho compreensível. Quando o Ministério Público concluir o inquérito saberemos quem posava com o sorridente Presidente Marcelo nas selfies: se vítimas inocentes de brutalidade policial; se pessoas que atiram pedras à polícia e desprezam a autoridade do Estado.
Eu não arrisco. Fui juiz naquela zona muitos anos. Conheço bem o bairro da Jamaica e muitos outros bairros sociais no distrito de Setúbal. Há lá gente espectacular e gente criminosa que não interessa. Como em todo o lado. Vi casos de agentes da PSP e militares da GNR que abusaram dos poderes e maltrataram pessoas. Casos de polícias que desconfiam de quem mora em bairros sociais. Mas também vi habitantes de bairros sociais que odeiam a polícia. Polícias selvaticamente agredidos a murro, cabeçada e pontapé, prostrados no chão com fogareiros atirados à cabeça. Polícias que foram ajudar alguém e saíram de lá feridos à bala ou à facada. Polícias com paciência de santo a aturar insultos de bêbados. Vi isso com polícias, arguidos e vítimas brancos, negros e de outras raças e etnias. Não encontrei um padrão que me permita catalogar profissões, grupos de pessoas ou bairros com a etiqueta fulminante do racismo.
Por isso, “ser Jamaica” está certo. Mas “ser polícia” também está. Sobretudo, quando pensamos nos 27 polícias mortos em serviço, nos 16.000 polícias agredidos, nas centenas de polícias com baixa psiquiátrica, nos 141 polícias que se suicidaram (dados dos últimos 10 anos: “Os polícias não choram”, de Miguel Rodrigues). Quando pensamos nos polícias que dormem em pensões de prostituição, corredores de esquadras ou automóveis, porque não têm dinheiro para pagar um quarto. Quando pensamos nos 789,54 euros de salário bruto de um polícia e nos que têm os salários penhorados e se vêm obrigados a fazer “ganchos” noutros trabalhos para poderem sustentar as famílias.
Se um Estado solidário não pode permitir bairros Jamaica, um Estado decente, que leva a sério a sua autoridade, também não pode tratar assim os polícias. É muito fácil bater-lhes. Mas não nos ficava mal dedicar-lhes também, de vez em quando, algum afecto.