A Igreja e as queimadas
Preocupa-me ver a Igreja deixar-se envolver numa campanha absurda que acentua uma abordagem repressiva para a gestão do fogo.
“Tenho comigo um aviso da GNR, para leitura amanhã no final da missa, em que se prometem multas para quem não cumprir a lei...”
“As reacções que me vão chegando são preocupantes... Desde intenções de manter o fogo no Inverno, mas passando-o para a madrugada, desta feita na clandestinidade, a vozes apelando que se acertem as contas no Verão...”
Estes excertos de conversas não foram inventados por mim, são de um amigo preocupado por “além de 'não deixarem arder', ainda vêm complicar o sistema acrescentado um ror de burocracias para utilização do fogo no Inverno”.
Como sou agnóstico, ouço poucas homilias ou avisos no fim da missa, não sei por isso se foram muitos ou poucos os padres que leram neste fim-de-semana, no fim da missa, estas promessas de inferno terreno para quem queimar sobrantes ou pastagens sem avisar primeiro um Estado que persiste em querer gerir a natureza como se se tratasse de um problema legal.
O facto de ser agnóstico não me impede de ter sido entrevistado sobre fogos e sociedade para o Ponto SJ, o portal dos Jesuítas, e de escrever um ensaio impertinente para a Brotéria, a revista dos Jesuítas.
Nessas alturas defendi que a Igreja tem uma enorme responsabilidade por ser, juntamente com a GNR, das poucas instituições com profunda capilaridade no mundo rural, chegando também aos sítios onde o Estado já só marca presença através da GNR.
O que me preocupa é ver a Igreja deixar-se envolver numa campanha errada, absurda e que prolonga e acentua uma abordagem formalista e repressiva para a gestão do fogo, deixando ainda mais desamparadas as populações rurais que o Estado parece empenhado em transformar em grupos de criminosos.
Não deixo de notar que finalmente o Estado português abandonou o criminoso slogan do “Portugal sem fogos depende de todos”, não deixo de notar que o Estado português já admite que alguns fogos, quando servem os objectivos de gestão do território e não põem em risco pessoas e bens, podem não ser apagados, que o Estado português tem um plano nacional para queimar, controladamente, 50 mil hectares por ano, que o Estado português já fala em pagar os serviços de ecossistema, mesmo que por enquanto seja essencialmente propaganda, que o Estado português vai dando passos na profissionalização dos operacionais de gestão do fogo. E todos esses passos são bons.
Mas, ao mesmo tempo, vejo helicópteros a apagar fogos em Janeiro, quando se estavam a desenvolver nas condições ideais em que devem ser usados, vejo, em Janeiro, com as condições técnicas perfeitas para os fogos terem o mínimo de efeitos negativos (se alguns) e o máximo de benefício social, a GNR entrar por Sistelo (e muitas outras aldeias), não para apoiar o esforço da população na gestão de combustíveis de forma sensata e sustentável mas para fazer interrogatórios, levantar autos e intimidar as pessoas com o objectivo de as impedir de fazer o que sempre fizeram e estavam a fazer para bem de todos, e a pedir à Igreja que use a sua profunda influência para dar apoio a uma política absurda de gestão do fogo, pedindo aos padres que defendam o lobo, em vez de guardar o rebanho.
O uso do fogo tem riscos? Claro que tem, como o uso de facas, como a condução automóvel, como o uso de motosserras, como o uso de tractores, como o uso da electricidade e como qualquer outro instrumento de gestão.
Criminalizar o uso do fogo tem duas consequências reais: o aumento do risco de fogos incontroláveis, por acumulação de combustíveis, e o aumento de pessoas que o usam clandestinamente.
Melhorar o mais que necessário uso do fogo exige de todos um esforço maior, mais qualificado e mais humano, o esforço de ajudar as pessoas comuns, com problemas concretos de gestão da paisagem para resolver, a usar melhor o fogo.
O que implica estar ao lado destas pessoas, compreender as suas dificuldades e problemas quotidianos e as razões que têm para usar o fogo, para as poder ajudar a usar melhor esse instrumento, abandonando de vez a estúpida opção do Estado, ou de partes do Estado, em tratar o assunto com a lei e a repressão, em vez de usar o conhecimento sobre o fogo e o respeito pelas pessoas que continuam a prestar-nos, a todos, o inestimável serviço de gerir as paisagens nas quais “damos grandes passeios ao Domingo”.