Mulheres portuguesas vivem em passo de corrida e sem tempo para elas
Mais de metade dos casais repartem as despesas da casa equitativamente. Mas o trabalho doméstico está longe de ser repartido. E entre a vida profissional e tudo o mais, restam às mulheres portuguesas apenas 54 minutos por dia para elas próprias. Estudo aponta riscos decorrentes da sobrecarga de trabalho.
A situação em que vivem as mulheres portuguesas é “insustentável a vários níveis”. Como profissionais, ganham menos do que eles e, se calhar por isso, mais de metade (51%) das mulheres declaram-se infelizes com o trabalho pago, segundo o estudo As mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como se sentem, que a Fundação Francisco Manuel dos Santos apresenta nesta terça-feira.
Dentro de portas, as mulheres inquiridas (2428 que, tendo entre 18 e 64 anos de idade, utilizam regularmente a Internet, numa amostra que representa 2,7 milhões de mulheres) declararam-se ainda responsáveis por 73% das tarefas domésticas. Se nada for feito, avisam os autores do estudo, coordenado pela especialista em market intelligence Laura Sagnier, a exaustão feminina começará a repercutir-se “na natalidade, no absentismo laboral, nos sistemas de protecção social, na educação das crianças e dos jovens e nos índices de divórcio”.
“O cansaço das mulheres tem um enorme impacto ao nível do bem-estar familiar e do seu bem-estar físico e psíquico, na sua saúde. Mas retiraria desta equação a questão do divórcio, cujo aumento está muito ligado a uma nova representação sobre a conjugalidade que leva as pessoas a sentirem-se livres para escolher outro caminho quando o casamento não funciona como um lugar de realização afectiva plena”, ressalva a investigadora Ana Nunes de Almeida, do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, num comentário às conclusões deste estudo de mercado.
Ressalvando que a amostra deixa de fora 19% das mulheres entre os 18 e os 64 anos (cerca de 634 mil mulheres, segundo o INE), bem como as que têm mais de 64 anos, ou seja, cerca de 1,3 milhões, a socióloga recupera ainda estudos académicos anteriores que, quanto às quebras na natalidade, avançam outras explicações, como as assentes no investimento na escolaridade das crianças: “Hoje em dia, um filho não é ‘um braço’ para o trabalho como no passado, portanto, as pessoas limitam o número de filhos porque, como pais, sentem que têm de lhes garantir a melhor escolaridade possível.”
Considerando “muito salutar que um grupo empresarial se esforce por pôr a sociedade portuguesa a debater este tema”, Ana Nunes de Almeida concorda que é urgente aliviar a sobrecarga das mulheres, nomeadamente das que somam o trabalho pago, a vida em casal e filhos. Até porque o que este estudo traz para cima da mesa é um retrato composto maioritariamente por mulheres que vivem em passo de corrida, exauridas pelo esforço de conciliação entre trabalho e família.
“As mulheres que têm um filho ou filha com cinco anos, ou menos, passam 82% do tempo em que estão em casa, acordadas, a dedicar-se à casa ou à família, desempenhando trabalhos não pagos: 46% às crianças, 35% às tarefas domésticas e 1% ao cuidado de netos ou dependentes.” Resultado: o tempo de que dispõem para si próprias (e onde têm de caber a higiene, ir ao cinema ou ao cabeleireiro, ler ou ver televisão…) fica reduzido a 54 minutos por dia, em média.
“Cinco ou seis gerações” para conseguir equilíbrio
O estudo sustenta ainda que, na repartição das tarefas domésticas entre os casais em que ambos têm trabalho pago, as mulheres suportam mais do triplo do trabalho. A mulher efectua, em média, 74% das tarefas domésticas, enquanto o homem se fica pelos 23% — os restantes 3% resolvem-se com recurso a ajuda remunerada. Os casais que se podem considerar simétricos na distribuição destas tarefas são apenas 30%. Num dos últimos estudos a olhar para o reduto doméstico na perspectiva da distribuição das tarefas, apresentado em Maio de 2018 e coordenado pela socióloga Anália Torres, concluía-se que elas assumiam o dobro do trabalho com as tarefas da casa.
No tocante aos cuidados com os filhos, a vida também não sorri muito às mães. Mesmo as que trabalham fora de casa dizem assumir mais do triplo do trabalho. É uma desigualdade que, segundo o estudo, não tem conhecido grandes evoluções. “No que concerne à contribuição do pai quanto ao cuidado e à educação dos filhos ou filhas, não houve nenhuma evolução em relação à geração anterior”, lê-se.
A socióloga Ana Nunes de Almeida considera, porém, que a entrada dos homens no reduto doméstico se tem feito justamente à boleia dos filhos: “Há estudos que nos mostram que os pais têm uma presença cada vez mais significativa junto da criança, juntamente com a mãe. Que têm a preocupação de os ajudar nos trabalhos de casa, de os levar ao ATL, e essa dimensão não pode ser esquecida, embora o grosso do trabalho, o que suja e o que é duro, continue a recair sobre as mulheres.”
Se nada for feito para obrigar mais homens a vestirem mais vezes o avental ou a pegarem na vassoura, por exemplo, “serão necessárias entre cinco a seis gerações para que se alcance uma distribuição paritária das tarefas domésticas entre homens e mulheres, nos casais em que ambos têm trabalho pago”, conclui o estudo.
Este desequilíbrio ocorre numa altura em que as mulheres contribuem cada vez mais para as despesas da família. “Constatamos que 73% das mulheres fazem mais trabalho não pago do que os companheiros. No que toca à contribuição para as despesas familiares, 54% dos casais reparte as despesas equitativamente”. Dito de outro modo: “Muitas mulheres assumem um papel activo na contribuição para as despesas familiares enquanto a maioria dos homens continua a manter um papel muito passivo no desempenho das tarefas relativas à casa e aos filhos.”
Assédio moral chegou a 35%
Quando se perguntou a estas mulheres se alguma vez foram vítimas de assédio no local de trabalho, 35% declaram-se vítimas de assédio moral e 16% de assédio sexual. São números acima dos apresentados no último grande inquérito sobre o tema, intitulado Assédio sexual e moral no local de trabalho em Portugal, da Comissão para a Igualdade no Trabalho no Emprego.
Do questionamento que em 2015 foi feito a 1801 portugueses, resultou que 16,5% da população activa já tinha sido alvo de assédio moral no local de trabalho (15,9% para os homens e 16,7% para as mulheres). Quando ao assédio sexual, a proporção era de 12,6% da população (8,6% dos homens declararam ter passado por isso, contra 14,4% das mulheres).
No tocante à violência doméstica e de género, também abordada neste estudo, 33% disseram já ter sido vítimas de violência psicológica e 12% de violência física.
Mais vale só…
O estudo propõe-se escrutinar muitas outras dimensões da vida das mulheres: se praticam desporto, se tomam antidepressivos, quantos parceiros tiveram. Quanto à actividade física, metade pratica-a pelo menos uma vez por semana e 43% têm excesso de peso. E mais de metade (57%) dizem que nunca tomaram antidepressivos. Apenas 14% declaram que nunca consomem vinho nem cerveja nem outras bebidas alcoólicas. Todas, incluindo a imensa maioria que se diz “sempre ou quase sempre” cansada, concluem que a pessoa parceira é “a faceta” da vida com mais potencial para lhes causar alegrias ou danos.
Entre as que vivem com alguém, 73% declaram-se felizes ou muito felizes com a relação que têm. Mas 21% assumem-se “enganadas” e 7% estão “profundamente infelizes” que todos os dias pensam pôr ponto final na relação. E o que é que pesa mais nesta balança de fidelidade conjugal? “Que ele participe de forma activa nas tarefas domésticas”, respondem as mulheres em primeiro lugar.
A segunda reivindicação é “que ele as oiça”. Quando isto não acontece, e porque ter um companheiro ou companheira com quem a mulher se sente infeliz afecta de forma muito mais negativa as restantes facetas da sua vida do que não ter qualquer parceiro, o estudo recupera o velho adágio: “Mais vale só do que mal acompanhado.”
Apesar de tudo o que foi apontado, 47% das mulheres dizem-se felizes ou muito felizes com as suas vidas em geral. Do outro lado, 33% dizem-se infelizes. E como factores dessa infelicidade, além do trabalho pago, surgem a falta de tempo para si, o aspecto físico e os filhos que o parceiro tem de relacionamentos anteriores.
As percepções de felicidade variam consoante a idade. A partir dos 28 anos, por exemplo, as mulheres sentem-se tanto mais felizes com o trabalho pago quanto melhor o consigam compatibilizar com a sua vida pessoal. Depois dos 50, essa necessidade esbate-se. De resto, o intervalo entre os 35 e os 49 anos surge como “o mais complicado”, por coincidir com o período em que o trabalho pago tende a somar-se à vida em casal e aos filhos pequenos.
“A partir dos 50 anos, algumas mulheres acabam por simplificar as suas vidas diminuindo o número de frentes: ou deixando a pessoa com quem viveram até essa altura ou diminuindo (ou abandonando) o trabalho (pago) que desenvolveram até essa idade”, caracterizam os autores do estudo, justificando assim que seja depois dos 50 que muitas mulheres recuperam algum do sentimento de “felicidade” que tinham perdido no ciclo de vida anterior.
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