Pêra, o peculiar, e os espectadores espantados
Uma retrospectiva de carreira no festival de Roterdão como pretexto para perguntar o que faz correr Edgar Pêra, experimentador que não é experimental, analógico que filma em digital, realista que rejeita o realismo.
Alguém pergunta a Edgar Pêra porque é que ele comprime tantas camadas de imagens e sons nos seus filmes, correndo o risco de sufocar as ideias fervilhantes que talvez fizesse melhor em deixar respirar. Estamos numa das salas do complexo Cinerama em Roterdão, depois da projecção de KINORAMA – Cinema Fora de Órbita, documentário/ensaio sobre o futuro do cinema que Pêra ainda está a montar; um work-in-progress para o qual pediu a contribuição do público (dezena e meia de curiosos, jornalistas, programadores), para ajudar a moldar a montagem final. Rodrigo Areias, fiel produtor do cineasta desde há uma década, regista tudo numa pequena câmara portátil.
No fundo, é de excesso que se está aqui a falar. É uma pergunta que faz sentido para todos aqueles que já tiverem visto pelo menos dois filmes de Edgar Pêra – de O Barão a O Espectador Espantado, de Movimentos Perpétuos a Virados do Avesso, de A Janela a Visões de Madredeus. Pêra é um cineasta sôfrego, excessivo, alguém que está sempre a filmar, a brincar, a procurar, a sobrecarregar os filmes – de imagens, sons, efeitos, ideias. Tudo a explodir para todo o lado ao mesmo tempo. E, na sala do Cinerama, tenta explicar ao interlocutor: “Não consigo ver imagens contemplativas durante muito tempo. Aborreço-me. Preciso de movimento. Mas sei que sou um espectador muito peculiar, não sou como a maioria das pessoas.”
Voltamos atrás no tempo: poucas horas antes, no centro de imprensa do International Film Festival Rotterdam (IFFR), Pêra define essa sua opção pelo excesso em detrimento do realismo. “É o excesso que o cinema dá que nos permite aceder a algo de transcendente, e o realismo não permite excessos. Ando sempre a dizer que um dia vou fazer um filme realista poético, que é o que a maior parte do cinema de autor é, realismo poético. Volta e meia digo a mim próprio que vou fazer uma adaptação do Tchekov, porque gosto muito daquilo. Tem uma verdade que me diz respeito,” explica o cineasta. “Mas, ao mesmo tempo, eu não nasci rico. Aqueles problemas são de gente que está sempre a perder coisas e eu não estou propriamente a recuperar nada. Tento fazer justiça à realidade, que é um bocado diferente.”
É uma explicação possível para a dificuldade de meter Pêra (n. 1960) numa gaveta, suficiente para deixar muita gente perplexa e uns quantos rendidos à sua lógica aparentemente ilógica de filmar em permanência. O cineasta está em Roterdão a convite do IFFR, que lhe dedicou este ano uma retrospectiva seleccionada e organizada pelo prestigiado crítico e programador alemão Olaf Möller: um total de 24 filmes, entre curtas, médias, longas e experiências, numa espécie de “introdução acelerada” a um percurso de quase 40 anos de cinema desalinhado - “coitadinhos”, diz Pêra entre gargalhadas.
Não é a sua primeira retrospectiva de carreira, nem mesmo internacional – houve Amesterdão em 2004, foi Herói Independente do Indielisboa em 2006, teve um ciclo abrangente em Serralves em 2016. Mas parece haver algo de especial em Roterdão: enquanto espera por um café, é interrompido por Bero Beyer, director artístico do certame, que lhe dá mais uma vez os parabéns pelo cine-concerto LoveCraftLand, com música de Paulo Furtado e participação de Iris Cayatte e Dominique Pinon, que esgotou o anfiteatro de maior lotação do complexo LantarenVenster. Após a projecção do documentário que dedicou a Alberto Pimenta, O Homem-Pykante, um espectador elogia profundamente o trabalho de som do filme. Mirjam Wiekenkamp, a assessora de imprensa, mostra-se surpreendida, pela positiva, com o número de entrevistas de fundo que Pêra deu; o próprio realizador confessa-se impressionado pelos rostos que vai vendo repetidamente ao longo das duas dúzias de sessões, quase todas seguidas de debates ou conversas com o público.
O entusiasmo de Roterdão por Pêra é explicável, em grande parte, pela multiplicidade e pela profusão do trabalho do cineasta, que encaixa na dimensão mais radical e vanguardista que o certame lançado em 1972 por Hubert Bals mantém viva – em 2019, por exemplo, houve espaço para uma série de performances de live cinema de Philippe Parreno numa das salas do complexo Pathé, No More Reality Whereabouts, bem como para a exibição do Livro de Imagem de Jean-Luc Godard num espaço construído como reprodução do seu estúdio caseiro no hotel NH Atlanta. E tanto Olaf Möller como António Preto, curador da retrospectiva de Serralves, insistem na dimensão vanguardista da prática cinematográfica de Pêra (“a palavra vanguarda ainda faz sentido para mim”, dirá durante a conversa).
Mas fica também a sensação de que este é um momento especial e genuinamente apreciado pelo cineasta: “É muito agradável,” diz, rindo. “Há uma grande vantagem disto não acontecer quando eu tenho 40 anos, mas sim já perto dos 60: o teu ego não fica baralhado, nem inchado. Fica do mesmo tamanhinho. E acabo por olhar para isto de uma maneira mais prática, mais do que «eh pá, sou o maior!»: «vamos lá ver se agora consigo que seja mais fácil ter alguns actores internacionais para o próximo filme»...”
Isto apesar de, no mais recente, Caminhos Magnétykos, já haver dois nomes de peso – o cantor brasileiro Ney Matogrosso e o actor francês Dominique Pinon, ele de Delicatessen. Estreado no LEFFEST em Novembro e com première internacional em Roterdão, o filme, que chegará às salas em Abril, é a mais recente manifestação da “obsessão” de Pêra pela obra de Branquinho da Fonseca (1905-1974), criador das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian e co-fundador da revista Presença: é a terceira longa que adapta de uma obra sua, depois do invisível Rio Turvo (2007) e de O Barão (2011). “O Branquinho surgiu de um acaso. Lembras-te daquele alfarrabista enorme que havia ao lado da Trindade? Às tantas vejo lá um livro chamado Rio Turvo, gostei imenso do título, e li a história toda. O que eu gosto nele é poder projectar-me nas suas histórias: são sempre problemas que eu entendo, que têm muitas vezes a ver com a imaturidade, no sentido em que uma pessoa está constantemente a voltar atrás no tempo para resolver problemas. E para além de ser um desalinhado, tem o lado de teres acesso a um pensamento. No Barão estás a ouvi-lo pensar, e no início do pensamento estás num cenário, no final estás noutro e nem dás por isso. E isso atrai-me imenso.”
É essa ideia de viagem imprevisível que norteia Pêra e o mantém em movimento perpétuo. “Tento sempre fazer filmes que têm a minha assinatura, mas que têm aproximações formais diferentes. Uma retrospectiva como esta obriga-me a pensar no que já fiz e no que me falta fazer – um pouco como um puzzle. Olho para as peças que faltam como caminhos que comecei e depois não segui. Tenho curtas que foram degraus para outros filmes – são esses que considero os experimentais: experimentei coisas a ver no que ia dar e depois fiz um filme com essas investigações.” Mas Pêra não se vê como um cineasta experimental. “Não. Só considero uma coisa experimental quando está a anunciar o potencial de algo. E aquilo que tento fazer é experimentar e depois dar um formato totalmente concluído a essa investigação. Que tem um lado experimental, sim, que se pode aproximar de um relatório científico, que não é de fácil leitura.”
Daqui nasce a dimensão de trip, do que ele chama de “estado alterado”, de muito do seu cinema - “e é preciso as pessoas estarem com vontade de ir para a trip, porque a própria linguagem do filme tem um estado alterado”, admite Pêra. É isso que explica as reacções amor/ódio que Pêra causa. Basta recordar a perplexidade com que Cine-Sapiens, a sua contribuição para o filme colectivo encomendado por Guimarães Capital da Cultura 3x3D ao lado de Peter Greenaway e Jean-Luc Godard, foi recebido internacionalmente, ou a reacção desastrosa à sua experiência improvisada-carnavalesca Delírio em Las Vedras.
Mais uma acha para a fogueira da dificuldade de encaixar Pêra numa gaveta: KINORAMA, a única verdadeira estreia no IFFR, é uma espécie de sequela de O Espectador Espantado, o seu filme-ensaio-tese-de-doutoramento à volta do cinema em 3D. E Olaf Möller fez questão de programar na retrospectiva a comédia popular feita por encomenda Virados do Avesso (o seu maior sucesso de bilheteira, com 120 mil espectadores em sala). “O Olaf coloca o Virados do Avesso na mesma linhagem da Janela e do Delírio em Las Vedras – são filmes do povo para o povo. E nunca me sinto um sellout a fazer essas coisas. Fiz bastantes encomendas institucionais, apesar de tudo, e quase sempre a minha 'loucura' foi respeitada. Eu tenho sempre a ilusão que é isto que as pessoas querem!”. Mesmo admitindo que os seus filmes não são assim tão legíveis formalmente - “o Caminhos Magnétykos é um filme de digestão muito lenta,” por exemplo.
Para alguém que pensa tanto na dimensão formal do cinema, que encontrou um novo entusiasmo nas possibilidades do sound design e que adora brincar com o 3D como forma de “aumentar o artificialismo da imagem”, “mais um contributo para o estado alterado da trip”, no entanto, há uma coisa de que Edgar Pêra não abdica: da espontaneidade. “Sou analógico a filmar, acho eu,” diz. “O que eu sempre gostei no Super 8 era o look de saudade instantânea, nostalgia imediata – filmo-te aqui e já parece há vinte anos. Estava a filmar o presente mas sempre a remeter para o passado. Os meus cine-concertos têm esse lado espontâneo, porque as pessoas veêm no momento como uma determinada imagem é transformada a partir do real; mas num filme é muito mais difícil aperceberes-te dessa espontaneidade, porque as pessoas não sentem aquilo como espontâneo, não vêem como essa transformação tem lugar. Vivemos num mundo de recompensas imediatas, e as pessoas são como as crianças, querem gratificação instantânea,” ri-se. “Ora, o meu cinema é contra as birras dos espectadores.” Ou não fosse ele um espectador peculiar.
O PÚBLICO viajou a convite da Bando à Parte, do IFFR e da Nitrato Filmes