Com os Massive Attack não se espera um final feliz à Hollywood
Um dos projectos mais influentes da música popular das últimas décadas está em digressão com Mezzanine, o álbum que agora é reeditado e que há vinte anos anunciou o mundo turbulento de hoje. Em Lisboa haverá dois concertos, a 18 e 19, que serão obras de arte totais de comunicação sonora e visual.
Estranho. Ou talvez não. Em Outubro do ano passado quando foi comunicado que os Massive Attack iriam realizar uma digressão à volta de Mezzanine, o álbum de 1998, que tem reedição prevista para 19 de Abril em vários formatos, gerou-se entusiasmo por todo o lado. Em Portugal também. De tal forma que depois de ter sido anunciado um primeiro concerto (18 de Fevereiro, Campo Pequeno, Lisboa), a elevada procura de bilhetes levou à marcação de segunda data, a 19.
O projecto tem sido uma presença regular em Portugal na última vintena de anos – a última vez foi em 2016, no âmbito do Super Bock Super Rock, quando actuaram no pavilhão multiusos, hoje conhecido como Altice Arena e que em 1998, quando ali deram o concerto inaugural daquele espaço, se designava Atlântico. Dir-se-ia até que o projecto estaria a fazer a sua travessia do deserto, porque o último álbum de originais, Heligoland, já data de 2010, e as últimas digressões foram recebidas com discrição.
Afinal, de repente, ei-los em grande. O que acaba por também não ser surpresa total. Por um lado porque já existe a distância temporal que permite aquilatar da enorme relevância dos Massive Attack para as transformações da música popular. Por outro porque sempre mantiveram um núcleo político que hoje parece ainda mais pertinente. E finalmente porque está em causa Mezzanine. É discutível se será o seu melhor registo, ou até o mais influente. Mas foi-se tornando no seu álbum mais popular.
Daí que a digressão iniciada a 28 de Janeiro, em Glasgow, na Escócia, se esteja a revelar um êxito. Há as canções do álbum, não tocadas pela ordem do disco. Tem havido versões (I found a reason dos Velvet Underground, Bela lugosi’s dead dos Bauhaus, Rockwrock dos Ultravox, Where all the flowers gone? de Pete Seeger ou 10:15 Saturday night dos The Cure). E como sempre existem também as vozes convidadas: neste caso, do veterano Horace Andy, presença regular, que canta dois temas do álbum e uma canção sua (See a man’s face), e de Elizabeth Frazer dos Cocteau Twins, que já não cantava ao lado deles desde 2006.
A digressão completa também uma nova produção audiovisual da responsabilidade do colaborador de longa data, o realizador e documentarista inglês Adam Curtis, que afirmou à imprensa que “o espectáculo conta a história da estranha viagem que todos temos feito nos últimos vinte anos desde que Mezzanine foi lançado”, numa alusão ao cosmos distópico que foi sendo criado nas últimas décadas. Afinal, falamos do autor de HyperNormalisation (2016), o magnífico documentário para a BBC que se tornou viral e onde Adam Curtis mostrava como vivemos desconectados da realidade, distraídos das complexidades de um globo administrado por corporações e mantido estável pela política, e que desistiu de procurar alternativas credíveis para a ficção em que se tornou.
Um mundo em agitação: eis algo que os Massive Attack conhecem bem. Ou porque ao longo dos anos foram reflectindo essas diversas turbulências (recorde-se que nasceram nos anos da Guerra do Golfo, no decorrer da qual tiveram que mudar temporariamente de nome, deixando cair o Attack), ou porque a história do próprio grupo é feita de conflitualidades.
“Sempre fomos ambíguos, musicalmente. Quando um de nós tentava puxar em demasia para um lado havia conflito”, dizia-nos 3D em 2006. Ao longo dos anos o projecto de Bristol apenas criou cinco álbuns de originais e todos, por razões diversas, foram momentos de ruptura. Seja por razões de metamorfose musical, por abandono definitivo ou temporário de um dos três membros originais ou pelas entradas e saídas de colaboradores mais frequentes (Shara Nelson, Tricky, Elizabeth Fraser, Nicolette, Tracy Thorne, Horace Andy). Os longos hiatos temporais entre cada disco são aliás reveladores que os métodos de trabalho nunca foram inteligíveis.
Por norma, a cada novo disco consideraram a dissolução. Em determinado momento, no decurso da feitura do primeiro álbum, Blue Lines (1991), deixaram de se falar. Depois de Protection (1994), durante um mês não existiu comunicação e Tricky, que nunca foi membro efectivo mas contribuiu para a ascensão do grupo, incompatibilizou-se com o trio.
Já 100th Window (2003), depois de Andy Vowles (Mushroom) ter saído, foi concebido por Robert Del Naja (3D) – com a ajuda do engenheiro de som e multi-instrumentista Neil Davidge – que responsabilizou Grant Marshall (Daddy G) por não ter colaborado mais, tendo-se este escudado na ideia de que não se revia em parte das canções criadas pelo parceiro. Na digressão que se seguiu, muito politizada e tecnologicamente avançada, fizeram as pazes, mas as indecisões continuaram, acabando por Heligoland (2010) ter duas versões, sendo a primeira enviada para o lixo.
Mas sem dúvida que a fase mais conflitual correspondeu ao lançamento de Mezzanine (1998). Até aí haviam sintetizado o que vinha de trás (hip-hop, dub, soul, funk) ao mesmo tempo que projectavam o que se seguiria (canção electrónica, dança horizontal, trip-hop). Ainda hoje quando se ouve Blue Lines essa projecção de futuro se sente. Parte significava da música das décadas seguintes está contida naquele disco.
Mas depois da digressão em torno de Protection o trio queria reinventar-se. Mushroom queria aprofundar a relação com a cultura hip-hop e a soul. 3D desejava que a música do trio ganhasse nervo, intensidade e alucinação, aproximando-se mais de modelos pós-punk, com a introdução de guitarras, sem abandonar por completo a identidade construída até aí.
Em 1996, em período de encubação criativa, tocaram pela primeira vez em Portugal, no festival Super Bock Super Rock, na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, num evento que contou também com David Bowie ou The Prodigy. Nessa altura aconteceu um episódio curioso. Na noite anterior, andavam em visita ao Bairro Alto, na companhia de Gabriela Carrilho, na altura A&R da Universal, quando fomos apresentados, tendo-me sido solicitado se poderia fazer de cicerone pela noite fora. Assim foi. Em conversa com 3D, no extinto bar Captain Kirk, este acabou por confessar que o seu grupo preferido eram os Clash e que lhes admirava a facilidade em combinar géneros de culturas muito diferentes, do rock ao reggae ou dub. E às tantas disse que o próximo álbum do grupo iria conter quase de certeza muitas guitarras e iria ser influenciado pelo pós-punk. Mais ainda: afirmou com convicção que essa época iria influenciar a música dos anos vindouros. Anos depois o tempo veio a dar-lhe razão, com o surgimento dos LCD Soundsystem, dos Franz Ferdinand e de tantos outros grupos.
Anos mais tarde, em 2006, numa entrevista, haveria de dizer-nos: “O pós-punk foi um período tão fértil que era óbvio que alguém se lembraria dele. Representou a oportunidade de músicos brancos e negros colaborarem, para lá do universo mais restrito do jazz. Houve fusões muito interessantes e bandas fantásticas, como os Clash e P.I.L. (Public Imaged Ltd) que foram determinantes no abrir de horizontes para rapazes brancos como eu. Foi através dessas bandas que cheguei à música negra.”
Em 1998, quando regressaram para o primeiro concerto no então Pavilhão Atlântico, Mezzanine tinha sido lançado há meia dúzia de meses. E lá estavam as guitarras. E o som mais potente, imediato e esquizóide, com a produção a pertencer a Neil Davidge. E em palco uma banda mais próxima das convenções clássicas, depois de quase ter desaparecido a forma de produzir com ritmos e samples, na linha do hip-hop. Se nos dois primeiros álbuns tínhamos tido acesso ao romantismo multicultural inglês, ali era-nos devolvida a tensão, a inquietude e o lado sombrio da realidade.
“Em Mezzanine quisemos encher o ar de guitarras, salientando a estrutura que as sustentava”, dizia-nos 3D em 2004. Depois da digressão que se seguiu ao lançamento do álbum, Mushroom, aquele que estava mais ligado à cultura hip-hop, acabou por sair, insatisfeito pelo facto de o trio quase ter deixado de lado a síntese de músicas negras, optando por um som mais próximo das convenções rock. E 3D dizia em 2004: “Durante algum tempo acreditámos que o conflito era necessário para nos alimentar, mas fomos percebendo que estávamos enganados. Foi por isso que Mushroom seguiu o seu caminho. Ele queria manter uma certa pureza soul e isso é difícil num projecto que vive da ambiguidade como este.”
A partir daí, aquilo que já era nítido, acabou por se tornar mais palpável, com 3D a assumir-se, ainda mais, como o timoneiro do projecto, projectando-se como o homem que pensa e concebe uma obra total chamada Massive Attack. “Em tudo o que fazemos existe, acima de tudo, um sentido estético, mas se nesse procedimento aquilo que comunicamos responder a uma situação social ou política tanto melhor”, dizia-nos ele em 2006, quando o interrogámos sobre o papel dos vídeos, do design gráfico dos discos ou da comunicação visual nos espectáculos ao vivo.
Hoje é nítido que 3D, muito mais do que um músico ou cantor, é um arquitecto de sons e imagens. É designer, pinta, pensa como produtor e age como criador visual, imagina conceitos e desenvolve ideias, que cruza com política, em criações colectivas que tantas vezes imaginamos solitárias. Não espanta que estejam sempre a dizer que deve ele ser o misterioso artista Banksy. Pelo menos se não é, poderia muito bem ser. Até nas frases com que transmite as novas aventuras há semelhanças. Quando se soube que iria haver uma digressão à volta dos 20 anos de Mezzanine disse de imediato. “Não esperem nostalgias. Não vai ser um espectáculo de sucessos. E sobretudo não esperem um final feliz à Hollywood!”