Ser (ou não ser) mulher: Hamlet muda de sexo na Comuna
Até 10 de Março, o Teatro da Comuna, em Lisboa, adapta o texto de Shakespeare a um elenco exclusivamente feminino. Hugo Franco dirige este Hamlet(a) em que o príncipe da Dinamarca é visto como um vilão.
Um Hamlet feminino não é propriamente uma novidade. Sarah Bernhardt entrou na pele do príncipe da Dinamarca nos palcos de Paris e de Londres em 1899, outras mulheres lhe seguiram os passos ao longo de todo o século XX até ao mais recente caso de popularidade que terá sido a investida de Maxine Peake (popularizada pela série Shameless) no papel há cinco anos. Já versões de Hamlet totalmente no feminino não abundarão certamente por aí. Mas foi essa a ideia que começou a obcecar o encenador Hugo Franco, quase como resposta – ou subversão – à regra do tempo de Shakespeare que impedia as mulheres de entrarem em cena. Essa fixação toma agora forma na peça Hamlet(a), que habitará o Teatro da Comuna até 10 de Março. Essa semente, confessa ao PÚBLICO, ficou-lhe plantada na cabeça desde que participou no Hamlet que João Mota dirigiu no Teatro Maria Matos, em 2007, com Diogo Infante como protagonista.
Ao chamar para o elenco Maria Ana Filipe, Margarida Cardeal, Diana Costa e Silva, Mónica Garnel, Tânia Alves, Lia Carvalho e Custódia Gallego, Hugo Franco quis descobrir que pulsão distinta assumiria o intocado texto obrigatório de Shakespeare se cada palavra passasse a sair da boca de uma mulher. Poderia essa simples deturpação conduzir a uma relação diferente entre Hamlet e o pai (o rei morto) ou mesmo a mãe (a rainha que se casa com o tio do príncipe, responsável pelo assassínio do rei, para ascender ao trono)? Poderia essa nuance alterar a relação de amizade entre Hamlet e Horácio? Ou o amor entre Hamlet e Ofélia?
“A essência da peça é exactamente igual”, concede o encenador ao PÚBLICO. “Muda a forma. Muda a maneira como uma mulher diz e trata o amor, a vingança, o assassínio.” A história não é alterada numa vírgula (e segue a tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen): Hamlet continua a ser visitado pelo fantasma do pai, que lhe dá conta da trama urdida pelo seu irmão para o assassinar e tomar o poder, facto que desencadeia no príncipe uma máquina de vingança que não poupa ninguém.
Justamente por causa da impiedosa e febril vingança que Hamlet empreende, Hugo Franco confessa ter uma visão pouco simpática da personagem. Entendimento que, admite, gerou alguma discussão com as actrizes durante os ensaios. Mas nesta perspectiva sentiu-se acompanhado por Maria Ana Filipe, a quem cabe dar corpo e voz a este Hamlet, e que vê na sua personagem “um vilão – tão mau quanto o tio –, que não olha a meios para se vingar e passar por cima de toda a gente”. Para Maria Ana, Hamlet(a) é um espectáculo movido, antes de mais, pelo desejo de transmitir uma obra que, por vezes, “não é tratada com a preocupação de comunicar realmente com o público”. Rejeita, de resto, quaisquer leituras feministas do espectáculo. “Acho que é uma questão sobretudo de humanidade e de universalidade que abordamos.”
Especialmente atraído pelo Rei Cláudio (Margarida Cardeal), Hugo Franco, assistente de João Mota há 18 anos, vê Hamlet(a) como uma peça feita de transgressão. “Transgredir é talvez o verbo que me ajudou a esta acção”, justifica. Foi nisso que pensou quando passou o papel de virginal inocência de Ofélia a Custódia Gallego, para que o texto se carregasse das paixões e dos amores de uma mulher madura, com um outro peso a pender sobre os afectos; e foi também nisso que pensou ao fazer Hamlet escrever a giz numa parede o célebre ‘Ser ou não ser’. Cláudio há-de, pouco depois, apagar a frase com cuspo para a corromper e transformar em ‘Ter ou não ter’. Ou não fosse ele o oficial usurpador do poder.