O país tem de ser capaz de aplicar "o que está previsto na lei da violência doméstica"
Rui do Carmo, coordenador da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, alerta para a necessidade de simplificar a forma como as autoridades actuam perante denúncias dos crimes que ocorrem no contexto de violência doméstica.
O procurador jubilado Rui do Carmo coordena a equipa que foi formada para analisar o que correu mal em situações de homicídio perpetrado em contextos de violência doméstica. O PÚBLICO entrevistou-o a propósito do caso do Seixal, em que um homem é suspeito de ter matado a sogra e a filha, tendo-se suicidado de seguida.
Os nove homicídios de mulheres contabilizados desde o início do ano são circunstanciais, são o início de uma escalada ou pode haver também aqui um efeito de imitação?
Acho que ninguém consegue responder a isso, dizer se é circunstancial ou agravamento. Estas coisas às vezes acontecem todas de seguida outras não, um bocadinho como os acidentes de viação. Os psicólogos costumam falar também desse efeito de imitação e pode ser contraproducente estar a noticiar estes casos, mas a informação depende sempre da forma como é produzida. Se for uma “notícia de sangue” é contraproducente porque pode, de facto, ter esse efeito de imitação, mas se for numa lógica de procura de compreensão, de diagnóstico e de combate ao fenómeno pode ter um papel muito positivo na medida em que ajuda à consciencialização do problema.
O que deve ser feito para que as cerca de 24 mil ocorrências de violência doméstica registadas todos os anos pelas forças policiais diminuam?
Acho que se tem que trabalhar muito a sério em quatro frentes para simplificar a forma como se tem de reagir. Por um lado, é preciso desenvolver a capacidade de identificação precoce das situações de violência doméstica e organizar a informação e a actuação coordenada e colaborativa dos vários serviços e entidades. E penso que isso se faz através da concretização de protocolos de actuação que abranjam os vários aspectos de intervenção neste domínio.
Há, por outro lado, uma segunda vertente que é importante quando já há uma denúncia por violência doméstica e que implica que tenhamos a capacidade de aplicar o que está previsto na lei da violência doméstica, no artigo 29.º A [que estabelece as medidas de protecção à vítima], ou seja, é preciso que se consiga identificar muito rapidamente o nível de risco que a vítima corre, distinguindo as situações de terrorismo íntimo das situações de violência situacional, e, portanto, capacitando as entidades competentes, nomeadamente as forças de segurança, para implementar as necessárias medidas de protecção à vítima e aos familiares da vítima. E, por outro lado, é preciso que sejamos capazes de tomar as medidas necessárias do ponto de vista judicial para a contenção do agressor.
E há uma terceira vertente que me parece fundamental e que é implementar a formação dos profissionais para a compreensão e para a interiorização deste problema, mas sempre associado à operacionalização esclarecida da intervenção das situações de violência. A formação para a compreensão e a operacionalização têm que estar necessariamente ligadas.
O país continua com o problema da descoordenação dos diferentes profissionais chamados a intervir nestas situações?
Continuamos com esse problema da descoordenação. E, por outro lado, é necessário garantir aos profissionais das várias áreas, particularmente das forças de segurança e de justiça, o acesso rápido e ágil ao contributo dos outros saberes, ou seja, a assessorias técnicas, sempre que se mostre necessário para que se possa compreender melhor o caso, gerir melhor a situação e definir mais eficazmente as medidas a tomar. Por vezes, esta falta de assessoria técnica é um facto que prejudica a compreensão de uma necessidade de intervenção rápida e com os meios que permitem evitar o agravamento da situação.