Um festival sem déjà-vu: assim será o GUIdance que agora começa
O Festival Internacional de Dança de Guimarães assume o “risco máximo” na nona edição, repleta de estreias absolutas, que esta quinta-feira se inicia. Drama, de Victor Hugo Pontes, coreógrafo convidado, abre o programa.
Daqui a um ano, quando festejar, parece que em grande, a sua primeira data redonda, o GUIdance – Festival Internacional de Dança de Guimarães poderá dizer que houve uma edição, esta que agora se inicia, em que arriscou tudo. Seis dos 11 espectáculos com que a partir desta quinta-feira o festival voltará a fazer um ponto da situação da dança contemporânea (sobretudo portuguesa, mas não exclusivamente) são estreias absolutas, sinalizando a confiança cega que o GUIdance deposita nos criadores a que se associa a cada novo round. Do coreógrafo convidado, o muito lá da casa Victor Hugo Pontes, que abre esta nona edição com Drama, às novíssimas peças das duplas Jonas & Lander e Joana Von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão, passando pelo aguardado blind date dos Mão Morta com Inês Jacques, este será um festival sem déjà-vu, um festival para mostrar o que nunca ninguém mostrou antes.
Fazer uma edição quase só com estreias (além das seis criações nacionais em estreia absoluta, há ainda duas primeiras apresentações em Portugal de espectáculos vindos de fora) é “o risco máximo”, admite Rui Torrinha, director artístico do GUIdance e programador do Centro Cultural Vila Flor, que maioritariamente o acolhe. Mas é o risco, defende, que deve correr uma programação conivente com os artistas e não com o mercado: “Esta é uma edição de cumplicidade extrema com os criadores, um caminho que iniciámos há dois anos em contraciclo absoluto relativamente às lógicas do mercado e dos circuitos de difusão; uma edição resistente às tendências e às agendas que vão impondo a padronização do gosto”, explica ao PÚBLICO.
Perfeitamente estabelecido como uma das mais importantes plataformas nacionais de difusão da dança contemporânea, o GUIdance quer agora que a sua militância se traduza cada vez mais num papel activo de estímulo à criação, encomendando e co-produzindo novas peças de coreógrafos portugueses de diferentes gerações que possam estrear-se no festival e ali dar início a uma circulação tão intensa quanto possível. “O que me coloca no mesmo lugar em que estão os espectadores, porque eu não sei literalmente o que vai acontecer”, sublinha Rui Torrinha, lembrando que apenas pôde ver de antemão os dois espectáculos internacionais do cartaz deste ano (Everyness, da companhia francesa Wang Ramirez, que se apresenta este sábado, e To a Simple, Rock’n’roll… Song, com que Michael Clark fecha o festival no dia 16) e as peças para crianças (Um Ponto que Dança, de Sara Anjos, e Oceano, de Ainhoa Vidal, que se apresentam nas mesmas datas, respectivamente).
Mesmo não podendo pôr a mão no fogo pela esmagadora maioria da sua programação, Rui Torrinha sublinha que o nono GUIdance é “o resultado de muitas conversas, de muitas reflexões”. Sobre o que significa fazer um festival, por exemplo, e a pertinência de o constituir, assertivamente, como um lugar político: “No ano passado, o destaque que demos aos gregos pretendia exprimir uma mensagem específica sobre a solidariedade que os países do Sul da Europa, onde o tecido de apoio às artes é especialmente frágil, devem ter entre si. Desta vez a mensagem é mais sobre a obrigação que temos, enquanto programadores, de dar condições aos artistas para que eles possam fazer, libertos dos constrangimentos da produção e do mercado, o caminho que as suas motivações e as suas urgências pedem; sobre a obrigação que temos de não insistir nas coisas gastas, de pôr coisas novas em cima da mesa.”
Cartas brancas
Das várias coisas novas que este GUIdance porá em cima da mesa, as duas peças de Victor Hugo Pontes – que, como coreógrafo convidado, foi desafiado a estrear uma nova criação e a remontar uma peça anterior – serão eventualmente as mais familiares para o público do festival, que desde 2011 já assistiu em primeira mão a vários espectáculos deste criador nascido (e iniciado nas artes performativas) em Guimarães, incluindo o que revisitará no dia 13, Fuga Sem Fim (e aquele que, um ano depois, o catapultou definitivamente para uma carreira na dança, A Ballet Story).
Tal como em 2016, Victor Hugo Pontes volta a abrir o festival com uma experiência crossover, transplantando para a linguagem não-verbal da dança mais um texto fundador do teatro contemporâneo, as Seis Personagens à Procura de Um Autor de Pirandello (há três anos partira de A Gaivota, de Tchékhov, para chegar a Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a). A sua escolha como coreógrafo convidado, diz Rui Torrinha, é uma cereja no topo da relação continuada que ao longo dos anos foi consolidando com o festival – que em 2020, cumprindo a política “sub-reptícia” de “intercalar gerações”, convidará Vera Mantero a ocupar o lugar do artista em destaque (as “negociações” sobre a peça do vasto acervo da coreógrafa que será remontada na décima edição do GUIdance estão já em curso).
Mas há mais relações antigas a que a edição deste ano quer “dar lastro”. Com a Útero de Miguel Moreira, por exemplo, que estreará a versão completa de Fraternidade I + II no dia 14, ou com a dupla Jonas & Lander, de que o GUIdance vem sendo co-produtor fiel, como de novo acontecerá com o espectáculo a estrear no dia 15, Lento e Largo, reaproximação da dupla à robótica e à sua “poética da alucinação”. Já a carta branca estendida aos Mão Morta, banda a que Rui Torrinha propôs um encontro inusitado com a coreógrafa Inês Jacques (a estreia é já esta sexta-feira, pondo um ponto final no suspense), tem um passado mais acidentado. “Tinha desafiado os Mão Morta a fazerem uma tournée de comemoração dos 25 anos do Mutantes S.21, álbum icónico a vários níveis – proposta que eles rejeitaram porque não lhes interessava esse tipo de gesto saudosista. A tournée acabou por acontecer e, por ironia do destino, não passou por Guimarães. Para reparar essa falha, propus-lhes que retomassem experiências mais performativas como a que resultou no [espectáculo] Müller no Hotel Hessischer Hof, e que a partir do seu repertório mais ambiental pudéssemos pensar numa peça nova, em colaboração com a Inês Jacques, que me parecia a pessoa adequada para os tirar da zona de conforto.”
Final “muito pop e muito punk”
Mais cegas ainda do que este blind date são as apostas em novas criações de Maurícia Neves (Anesthetize, dia 9) e Joana Von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão (Dos Suicidados – O Vício de Humilhar a Imortalidade, dia 16), ambas agendadas para a black box do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Dão corpo, aponta Rui Torrinha, à vontade de incluir “artistas emergentes e as suas formas mais inclassificáveis de estar em palco” no mapa que é este GUIdance: “Também faz parte do nosso papel interrogar o que é realmente a dança, e tentamos manter esse questionamento vivo. Através dos espectáculos e das actividades paralelas – masterclasses, debates, talks, conferências e essa peça para nós muito importante, porque queremos ter um olhar crítico sobre nós próprios, que é o jornal do festival.”
À espera dos imprevistos que podem e devem acontecer neste GUIdance estarão não só os espectadores do festival mas também programadores e outros agentes, nacionais e estrangeiros, convidados a assistir a tudo o que ali se apresentará pela primeira vez – é outro dos bónus de haver tantas estreias absolutas, diz Rui Torrinha, “poder trazer pessoas de fora para verem esta vitalidade toda”. A inserção do CCVF na rede internacional Aerowaves veio facilitar a tarefa de internacionalizar os artistas que o festival co-produz – Lento e Largo, que a dupla Jonas & Lander irá a Guimarães estrear na recta final deste GUIdance, “já tem confirmadas várias datas internacionais”, exemplifica o programador.
A nona edição do GUIdance fechará no dia 16 com o espectáculo de um artista muito ansiado, o escocês Michael Clark, que pela primeira vez mostrará em Portugal uma peça do seu repertório (em 2016, quando passou por Serralves e ali deixou entrever o seu processo criativo, apresentou apenas uma série de curtas experiências “laboratoriais”). Será, antecipa Rui Torrinha, um final “muito pop e muito punk”, enquanto não chegam os dez anos – e talvez outras responsabilidades.