História de uma petição ignorada
Para resolver o problema de recursos humanos em Saúde no nosso país é necessário, em primeiro lugar, avaliar de forma independente as necessidades dos nossos serviços. Esse era o principal pedido da petição. Ficou, infelizmente, por cumprir.
Em teoria, os cidadãos têm um papel relevante no processo legislativo. Uma das ferramentas ideais para levar os deputados a resolver um problema é a petição. Ou, pelo menos, seria essa a ideia. Esta é a história de uma petição que até chegou ao plenário, mas que nunca deixou de ser ignorada.
O problema é antigo e a petição também. Foi em Novembro de 2017 que a petição n.º 419/XIII/3, pelas mãos da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), deu entrada na Assembleia da República, com mais de seis mil assinaturas, a representar um pedido muito concreto – será possível que o nosso país planeie, a médio e longo prazo, os recursos humanos de que o seu Sistema Nacional de Saúde precisa?
A petição foi fazendo o seu percurso. Oito meses depois de dar entrada foi levada à Comissão de Saúde, onde foi discutida. O passo seguinte, o debate no plenário, aconteceu apenas na última quarta-feira, mais de um ano depois de a petição ter dado entrada. Mas pelo menos foi discutida, não é verdade?
Bom... depende. Que a petição consta da agenda do plenário, consta. Se foi discutida, é algo ligeiramente diferente. As intervenções dos vários partidos foram dirigidas, não ao problema apresentado, mas às lutas entre eles. Todos reconheceram a necessidade de um planeamento, mas acabaram por preferir focar-se em atribuir culpas num assunto onde sucessivos governos, à esquerda e à direita, falharam redondamente. E, paradoxalmente, a atribuição de culpas ocupou tanto os partidos que a apresentação de propostas reais ficou para trás.
Ora, para o problema concreto apresentado pelos peticionários, foi apresentado apenas um projeto de resolução, por parte do PAN, que pede, entre outras coisas, que realmente se faça aquilo que foi legislado já em agosto de 2015 – o Inventário Nacional dos Profissionais de Saúde. Responde isto ao problema concreto? Se é verdade que estes dados são necessários para resolver o problema, também não constituem uma solução.
Para resolver o problema de recursos humanos em Saúde no nosso país é necessário, em primeiro lugar, avaliar de forma independente as necessidades dos nossos serviços, coisa que, à primeira vista, parece óbvia, mas continua por concretizar. Esse era o principal pedido da petição – um olhar imparcial. Ficou, infelizmente, por cumprir.
Mais há a fazer: é preciso coragem para adequar o número de ingressos nas faculdades às necessidades do país e dotar os serviços de saúde de capacidade de resposta às solicitações da população (que, consequentemente, se traduzirá em maior capacidade para formar profissionais). Ambas estas medidas trariam benefícios ao nosso sistema de saúde, mas como podemos implementá-las, se os nossos responsáveis políticos não são capazes de implementar sequer aquilo – uma avaliação isenta – que parece do mais elementar bom senso?
A história desta petição tem ainda uma prequela que será interessante revelar. Começa com a proposta enviada ao Governo em 2016, acompanhada de uma campanha de grande projeção por parte da ANEM, associação que representa os estudantes de Medicina, onde se exigia a adequação do número de ingressos neste curso à capacidade de formar especialistas e às necessidades do país. Previsivelmente, estas iniciativas não tiveram resposta, nem audiência com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, nada. Por não ter respostas, a ANEM recolheu assinaturas e lançou uma petição onde pedia o planeamento a longo prazo. Como já puderam ler, tudo o que obteve foi esta promessa de planear o planeamento, quem sabe, um dia, um dia em que seja mais importante deixar feito do que acusar os outros de nada fazer.
O problema a que a petição visa responder é real e faz-se sentir cada vez mais. A qualidade da formação médica deteriora-se dia após dia devido ao excesso de estudantes nos serviços de saúde, serviços esses que, simultaneamente, cada vez mais são confrontados com a insuficiência de recursos materiais e humanos. Pior ainda – este é um problema para o qual diversos agentes, ANEM incluída, vêm a alertar há anos a fio, sem que alguém se proponha a dar-lhe resposta. Tudo isto resulta na criação de profissionais sem acesso a diferenciação ou a um programa de formação estruturado, que prestam cuidados de forma temporária, precária e não tutelada. É esta a Saúde que queremos para o nosso país?
Este problema não é apenas destes peticionários. É um problema de todos os cidadãos que queiram manter a ilusão de se achar parte das decisões, de se achar capazes de fazer ouvir os seus problemas e de obter soluções. É também um problema que espelha a dificuldade de o país se pensar a si mesmo, de se projetar no futuro e de saber como se quer ver e o que fazer para lá chegar. Na passada quarta o problema foi este, mas podia ser outro. 230 bocas, 460 orelhas moucas?
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico