Joana M. Lopes: onde tudo começou
Romance de estreia de uma autora talentosa que parece querer recuperar um certo imaginário rural ao mesmo tempo que o funde com um outro universo.
Joana M. Lopes (n. 1984) é animadora cultural, artista plástica e autora de alguns livros infanto-juvenis. Este A Vida de Um Homem Que Perseguia Poemas é o seu primeiro romance. Assim começa o livro: “Quase vinte anos depois, regresso à aldeia, regresso a esta casa, regresso a mim. Estremeço, sou um homem que vem para morrer, sou um homem que vem para nascer dessa morte, agora que estou finalmente lúcido, venho curar-me.” Neste parágrafo o livro anuncia-se e quase se resume. A história que começa a ser narrada será uma longa analepse da ainda curta vida de um homem (nunca nomeado) que ali nasceu, e que ao regressar, ao mesmo tempo que revê alguns objectos do seu passado espalhados pela casa, mergulha numa espécie de fluxo caleidoscópico, de um rodopio de memórias.
Curiosamente — ou talvez nem tanto, porque é um ambiente que vem surgindo amiúde nos livros da mais nova geração de autores (como por exemplo nos recentes de Carla Pais e de Raquel Gaspar Silva) — a história narrada tem, quase toda, o mundo rural como cenário. As suas personagens movem-se num tempo que parece ser de “outro tempo”, num mundo perto do atávico, onde religião e superstição se misturam, em que os preconceitos têm uma dimensão de organização social, onde vozes ecoam nas ruas e nas casas, onde as pessoas passam afastadas de um poço em que alguém se matou, onde um homem desaparece na terra, onde tudo se diz e quase nada pode ser dito. Um mundo onde as histórias parecem crescer da terra, por entre as ervas do quintal, das pedras dos muros, da estatuária dos santos de oratório, das brenhas e das canelhas, dos currais e das capelas, dos lameiros e das leiras, e onde os mortos continuam quase tão vivos na memória do granito como os vivos que habitam essas casas.
Em A Vida de Um Homem Que Perseguia Poemas conta-se a história de um homem que quer escrever versos, que se esforça, que tem a obsessão pelas palavras, que tem a “premência de escrever em segredo”, mas que ao mesmo tempo tem a incapacidade de o fazer — a tal “doença” de que se quer curar. Ao narrar a sua vida, o leitor vai-se apercebendo da origem do “mal”, daquilo que o obrigou a tolher-se da capacidade de exprimir de maneira coerente e aceitável uma sensibilidade exacerbada. Toda a história da sua infância — com um pai que o abandonou e uma mãe alcoólica que morre afogada num poço — conduz a um avô aldeão cujos preconceitos o obrigam a estruturar-se de maneira a defender-se de mais sofrimento. Por isso, ao regressar da cidade onde foi “varredor de estações de transporte”, ele diz, “foi aqui que tudo começou”, pois acredita que só ali poderá restabelecer a paz, a liberdade, a verdade.
Joana M. Lopes não cede ao facilitismo de uma linguagem “folclórica” associada ao ambiente rural, nem se deixa levar por bucolismos tontos e romantizados do “regresso à terra”. Sabe que o rural é violento, de uma violência crua e sem disfarces, onde tudo está mais perto do sangue e do mal; não o exibe e também não o esconde. Mas antes consegue mostrar essa crueza por oposição: ao usar uma linguagem por vezes poética e gestos da personagem principal que a aproximam de uma ideia de “pureza” não existente. Sendo um romance para adultos, ao longo de quase toda a narrativa (a excepção será a parte final) se percebe a apetência da autora pelo universo infanto-juvenil (não sendo isto desmerecimento algum, antes pelo contrário): há um desprendimento fácil da realidade, um manobrar com destreza um imaginário onírico, sobretudo nos capítulos sobre a infância e a juventude (mais de metade do livro) da personagem. Ao parecer tentar um certo imaginário rural — de onde as crenças e as superstições não estão ausentes (é magistral uma cena em que o avô desaparece na terra como uma toupeira) — Joana M. Lopes funde-o com um outro universo, o onírico e declaradamente poético. Sendo um primeiro romance, não é de estranhar (embora seja notório) como a linguagem e a destreza narrativa vão ganhando fôlego ao longo do livro, terminando quase em apoteose (de onde a capacidade reflexiva não está ausente).