AOC e as discussões em 0 e 1
Passamos tanto tempo a discutir uns com os outros através de computadores, tablets e smartphones, que não admira termos assimilado a linguagem deles antes de ser descodificada: ou 0 ou 1.
Há muitos, muitos anos, quando as iniciais WWW eram ainda tão misteriosas como a supervisão do BES, as grandes figuras da política internacional tinham de se esforçar para serem tratadas pelas primeiras letras do seu nome. Nem o exemplo de Franklin Delano Roosevelt, o Presidente FDR dos EUA durante quase toda a Segunda Guerra Mundial, deixou John F. Kennedy à vontade para se transformar em JFK só porque sim.
A história é contada no Dicionário Político de William Safire, que cita Ted Sorensen, autor dos principais discursos do Presidente Kennedy: “JFK — ele persuadiu os jornalistas a tratarem-no dessa forma, não para imitar FDR, mas para evitar que o tratassem por ‘Jack’, que lhe dava um ar muito jovem.”
Vem isto a propósito da nova estrela do Partido Democrata norte-americano, Alexandria Ocasio-Cortez, cuja entrada em cena na política provocou uma incontrolável urticária nos sectores mais conservadores e fez os mais progressistas sonharem com um mundo melhor para todos, imagine all the people / living life in peace.
No último fim-de-semana de 2018, a poucos dias de se estrear no Congresso como representante de um distrito de Nova Iorque, Alexandria Ocasio-Cortez mudou o seu nome de utilizadora no Twitter, onde já tem mais de 2,5 milhões de seguidores: a partir desse dia, a conta anteriormente conhecida como @Ocasio2018 passou a apresentar-se apenas como @AOC.
“Trump e AOC são o futuro das notícias”, escreveu o site Politico na quinta-feira. No mesmo dia, a Newsweek propunha-se a esmiuçar “a transformação de AOC numa gigante das redes sociais”. E nem foi preciso persuadir ninguém, JFK.
A mudança só pode ser boa para ela – as vantagens de imagem são muitas, e o estilo que isso dá nem se fala. Mas a redução de um nome às suas iniciais, no caso de Alexandria Ocasio-Cortez, é também uma boa metáfora da simplificação do debate que se gerou à volta dela — e do debate que se gera à volta de quase tudo neste planeta WWW.
É perguntar a qualquer pessoa que siga a política americana a sua opinião sobre AOC e é quase certo que a resposta será ou 0 ou 1: ou é uma lufada de ar fresco que vai derrubar todos os muros psicológicos erguidos por Donald Trump — o DJT — e conduzir o país a um qualquer paraíso perdido, ou é a miúda tontinha que só aparece nas notícias porque fica bem na televisão.
Para os primeiros, pouco interessa que a jovem congressista se tenha envolvido numa batalha pública com o responsável pelo fact checking do jornal Washington Post, por ser contemplada com uns quantos Pinóquios mais vezes do que a sua imagem anti-Trump recomendaria.
Para os segundos, não interessa que a sua proposta de aumento da taxa máxima de impostos para 70% faça sentido no país. Ainda hoje não querem perceber que esses 70% só se aplicam a partir dos 10 milhões de dólares — e que na década de 1950, período de grande crescimento nos EUA, essa taxa tenha chegado aos 91%.
Não há tempo para mais, Internet. Afinal, passamos tanto tempo a discutir uns com os outros através de computadores, tablets e smartphones, que não admira termos assimilado a linguagem deles antes de ser descodificada: ou 0 ou 1. Ou sim ou não. Ou nós ou eles. Ou vítimas ou culpados. Ou se portam bem ou vão para a vossa terra.