Edgar Pêra e o seu (nosso) Homem-Tigre tiveram casa cheia em Roterdão
O cineasta português está a ser alvo de retrospectiva na 48.ª edição do Festival de Roterdão. E levou com ele, para uma sala desenhada por Álvaro Siza, o espírito de H. P. Lovecraft e a música de Paulo Furtado.
Casa cheia para receber Edgar Pêra e o seu cine-concerto à volta do escritor americano H. P. Lovecraft – não em Lisboa ou em Vila do Conde, mas sim em Roterdão, no âmbito da RetroFutureSpektive que o International Film Festival Rotterdam (IFFR) dedica este ano ao autor de A Janela e O Barão. Num programa com curadoria do crítico e programador alemão Olaf Möller, LoveCraftLand foi até agora o ponto alto da presença do realizador lisboeta na cidade holandesa – com uma das salas do complexo multiusos LantarenVenster (desenhado por Álvaro Siza) bem apinhada em noite de sábado para assistir ao mais recente projecto multimédia de Pêra, com os proverbiais óculos bicolores de plástico e papel.
Música composta por Paulo Furtado em sintetizadores modulares e interpretada ao vivo sobre uma mistura de imagens pré-filmadas em 3D, improvisos vídeo em tempo real com Edgar Pêra à câmara e Cláudio Vasques na montagem, as presenças de Iris Cayatte e Dominique Pinon a darem corpo na sala a textos do autor de Nas Montanhas da Loucura: LoveCraftLand é de muito longe a mais conseguida e mais inteligente performance audiovisual do cineasta português. As arestas mais rugosas da espontaneidade paredes-meias com o delírio que por vezes deitavam a perder boas ideias noutros “cine-concertos” foram aqui limadas com cuidado. Os ambientes sonoros construídos por Furtado são inspirados, sonoramente longe da americana de Legendary Tigerman mas melodicamente muito próximos dos momentos mais pop dos WrayGunn, dentro de uma lógica retro-futurista para filmes nunca feitos; a voz e a presença magnéticas de Cayatte e a truculência de Pinon entrosam-se na perfeição com o 3D “muito lá de casa” e os psicadelismos cristalizados do realizador.
Que Pêra seja a “eminência parda” que paira este ano sobre a presença lusa em Roterdão não é forçosamente uma surpresa; o cineasta já estivera antes no festival e a dimensão underground de muito do seu trabalho encaixa às mil maravilhas numa programação abrangente – tão abrangente que se abeira da dispersão. O alinhamento vai do extremamente popular (Cafarnaum, de Nadine Labaki, candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, é, na altura em que escrevemos, o líder na votação para o prémio do público) ao mais experimental (Philippe Parreno apresentou durante os primeiros cinco dias uma instalação de live cinema construído em tempo real no multiplex Pathé, bem no centro da cidade: No More Reality Whereabouts), num equilíbrio que se mantém há 48 anos, desde a primeira edição, em 1972.
Além de Edgar Pêra
A presença portuguesa em Roterdão não se resume porém a Edgar Pêra. No ano passado, o IFFR estreou nas suas secções principais Tempo Comum, de Susana Nobre, e Djon África, de Filipa Reis e João Miller Guerra; este ano, o programa principal de descobertas Bright Future abre espaço a Alva, segunda longa (e primeira ficção) de Ico Costa, após o documentário BARULHO, ECLIPSE, enquanto a competição de curtas Ammodo Tiger tem a concurso Anteu, de João Vladimiro. Há também o Diamantino de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, fora de concurso na paralela Perspectives – o filme continua a correr o circuito de festivais sem que veja estreia em Portugal, quase um ano depois do seu prémio em Cannes –, e uma surpresa, também a meias, chamada Tragam-me a Cabeça de Carmen M. (Bright Future), média-metragem “transatlântica” assinada pela portuguesa Catarina Wallenstein e pelo brasileiro Felipe Bragança, rodada no Rio de Janeiro e acabada de chegar da estreia mundial na mostra brasileira de Tiradentes.
Mas, quanto a longas-metragens em estreia mundial, Alva, híbrido frágil de ficção inspirada em factos reais, é o caso único. E é pena que assim seja, porque, partindo de coordenadas muito semelhantes, Ico Costa tinha produzido um objecto mais conseguido em Nyo Vweta Nafta, a curta de 2017 que teve uma impressionante carreira internacional precisamente a partir de Roterdão.
Em Alva, encontramos Henrique, que vive sozinho na sua quinta rural. O leite das ovelhas que cria permite-lhe ir subsistindo, mas nada parece interessá-lo, a não ser o destino das filhas que não estão presentes – Costa apenas revelará aos poucos, e sem nunca abrir por inteiro o jogo, o trauma que persegue este homem e o modo como às tantas Henrique decide lidar com ele, no que tanto pode ser uma fuga para a frente como uma admissão, um sintoma como uma saída.
Mas essa revelação é de tal modo relutante que Henrique continuará a ser um monólito quase indecifrável, inexplicável, como se resistisse à tentativa do espectador (ou, quem sabe, do realizador?) para o penetrar. Esse é o trunfo e o problema de Alva: é um filme inegavelmente inteligente, com um óptimo arranque e um final fortíssimo, enfraquecido por uma zona central que se ensimesma quase até ao autismo, inspirada claramente pelas referências “paisagísticas”, sensoriais, da dupla Reis/Cordeiro, mas incapaz de comunicar com o espectador do mesmo modo. É pena, mas é ainda assim um falhanço do qual Ico Costa se pode orgulhar.
O PÚBLICO viajou a convite da Bando à Parte, do IFFR e da Nitrato Filmes