Mulher apresenta queixa contra médicos que não lhe reconheceram incapacidade
São cada vez menos os portugueses que conseguem obter uma pensão de invalidez. Em 17 anos houve uma quebra de 49%, segundo as estatísticas da Segurança Social.
A primeira vez que Cidália Pinto se apresentou a uma comissão de verificação de incapacidades ainda não tinha passado um ano sobre a cirurgia que lhe diagnosticou um tumor benigno do sistema nervoso central (meningioma meningotelial 1). Chegou ao Centro de Reabilitação do Norte, em Vila Nova de Gaia, onde funcionam aquelas comissões na área do Centro Distrital do Porto da Segurança Social, munida de diferentes relatórios médicos que garantiam que estava incapaz de exercer a actividade laboral, mas saiu de lá sem o atestado de incapacidade permanente que esperava obter e que lhe daria acesso a uma pensão de invalidez.
Depois de reclamar e sem conseguir obter uma resposta diferente da comissão (vulgo “junta médica”), apresentou queixa no Ministério Público contra oito médicos que avaliaram o seu caso. Há cada vez menos pessoas com pensão de invalidez.
Cidália Pinto não está confinada a uma cama. Pode caminhar, mexer os braços, mas não com a facilidade e amplitude que tinha antes das duas cirurgias a que foi submetida — a primeira a 11 de Outubro de 2016 e a segunda a 23 de Novembro desse ano, para resolver complicações decorrentes da intervenção inicial.
Desde então, diz, ficou com a mobilidade afectada, além de “dores constantes e limitações nos movimentos”. A situação, garante, tem piorado, e os atestados multiusos que guarda junto de todos os outros papéis do seu processo parecem confirmar o que diz: se o primeiro lhe atribuía uma incapacidade de 60%, o mais recente, de Maio de 2018, faz subir esse valor para os 83%. Desde que o seu estado de saúde piorou, e ainda antes das cirurgias, que deixou o emprego de delegada de informação médica. Não tinha cumprido seis meses de contrato, pelo que não tem qualquer rendimento além dos 264 euros da Pensão Social para a Inclusão — uma prestação destinada a pessoas com deficiência ou incapacidade.
A mulher, de 51 anos, mostra um a um os relatórios que apresentou à médica relatora que a viu, a 20 de Junho de 2017, data da primeira junta médica, e vai abanando a cabeça em sinal de incompreensão. Há um do neurocirurgião que a operou, no Hospital de S. João, atestando que o estado em que Cidália se encontrava, quase seis meses após a cirurgia inicial, “incapacita a doente para a actividade laboral, condução e para a realização de tarefas domésticas”. Um outro, da clínica em que fazia fisiatria, alegando “a incapacidade para a realização de algumas tarefas da vida diária, nomeadamente condução automóvel, que a tornam incapaz para o desempenho da sua profissão” e mais um, da psiquiatra que a acompanha, informando que Cidália apresentava uma “sintomatologia depressiva major”, concluindo: “É meu parecer que a doente não reúne condições de estabilidade ou de melhoria clínica que lhe permita continuar a trabalhar, e creio-a severamente incapacitada.”
“Robusta” e “conversadora”
Apesar dos documentos, a médica relatora aconselhou a não atribuição do atestado de invalidez, por considerar que a situação de Cidália se poderia inverter nos três anos subsequentes, o que lhe permitiria retomar a actividade laboral. A avaliação, acompanhada por uma descrição desta médica em que apresenta, entre outras coisas, Cidália como “robusta”, “bem arranjada” e “muito conversadora” foi corroborada pelos dois outros médicos da comissão.
É contra eles e outros médicos que analisaram os seus pedidos e reclamações que Cidália apresentou uma queixa-crime ao Ministério Público, pelo que considera ser uma “violação das leges artis”. Cidália considera que os médicos que a avaliaram, por não serem da área da Neurocirurgia, não tinham competência para o fazer. “O que eu quero é que me façam uma avaliação por uma troika de neurocirurgiões. O meu objectivo é que isto seja clarificado de uma vez por todas e alertar também para a insensibilidade com que somos tratados. Tive de ouvir, daquela primeira médica, que até tinha sorte, porque não tinha um cancro, nem os braços ou pernas partidos. Como é que isto é possível?”, queixa-se, insistindo que a perita que primeiro a avaliou era “estomatologista”.
O Instituto da Segurança Social (ISS) desvaloriza, explicando que a visada possui, além da especialidade de Estomatologia, duas outras, em Medicina do Trabalho e em Peritagem Médica da Segurança Social.
Esta última é uma das que o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considera essencial para o bom funcionamento das comissões. “Os médicos que participam nas juntas médicas devem, antes de mais, ter uma formação específica em ‘peritagem médica da segurança social’, que existe como ‘competência da Ordem dos Médicos.’ Na ausência de médicos sem esta competência específica, deve fazer parte da junta médica pelo menos um médico especialista na área clínica que seja motivo de avaliação”, refere.
O número de pensões de invalidez tem vindo a diminuir de forma consistente, há mais de duas décadas. Se em Dezembro de 2001 havia cerca de 357 mil portugueses com esta prestação social, no final de 2017 o número rondava os 230 mil. Em Dezembro do ano passado, segundo os dados do ISS, este valor tinha descido para cerca de 176 mil. É uma redução de 49% em 17 anos.
Ana Cardoso, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES/IUL), diz que “com base na observação” dos casos com que o centro se depara é possível avançar com algumas hipóteses para esta tendência, ressalvando que não se baseia em qualquer estudo, mas “no trabalho directo” desenvolvido. “Temos noção do maior aperto das condições de acesso às pensões”, diz. Admite que as razões se prenderão “com o desenvolvimento, por um lado, e a crise, pelo outro”.
Ou seja, se há pessoas que hoje serão, eventualmente, “deixadas de fora” das pensões de invalidez porque os critérios do próprio ISS “restringem mais o acesso”, por outro lado “houve uma evolução da própria sociedade”, diz a investigadora. “Temos de ter em conta um factor que tem que ver com a melhoria das próprias condições de higiene e segurança no trabalho.” Uma melhoria que terá levado a uma diminuição de acidentes mais graves, nas profissões “de alto risco”, que poderiam levar a situações de invalidez, explica.
Poucas queixas
A denúncia de alguns casos extremos de recusa do atestado de incapacidade permanente — como o de um tetraplégico que em 2016 lhe viu negado o acesso à pensão de invalidez — alertou a opinião pública para o funcionamento das juntas médicas e levou mesmo o bastonário Miguel Guimarães a dizer, em 2017, que se ia informar “para perceber melhor” o que estava a acontecer.
O responsável diz agora que não foi feita qualquer avaliação formal, já que as juntas médicas não dependem do órgão a que preside, mas garante que, “ainda assim, a Ordem dos Médicos não deixou de apresentar as suas preocupações à tutela relativamente ao modelo de organização e funcionamento das juntas médicas”.
No caso de Cidália Pinto, o ISS esclarece que a mulher apresentou dois pedidos de pensão de invalidez — o de 2017 e um outro em 2018 — e que em ambos os casos tanto a comissão de verificação de incapacidade como as comissões de recurso que solicitou “concluíram não se verificar incapacidade permanente para o exercício da sua profissão”. Aquando da avaliação do segundo pedido, em Fevereiro de 2018, Cidália já tinha consigo mais documentos: uma carta do director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de S. João, confirmando que, no seu entender, “a incapacidade para a actividade laboral” da mulher “é definitiva”; e um relatório médico pericial em que a especialista lhe atribui “incapacidade parcial permanente fixável em 89,837% com deficiência motora”, referindo que a mulher estava “total e definitivamente incapaz para o exercício da sua actividade profissional.”
Neste momento, Cidália tem um novo pedido feito, “que se encontra ainda em avaliação”, explica o ISS. Em relação à queixa apresentada ao MP, o instituto diz que o Centro Distrital do Porto a desconhece.
Não existem dados conhecidos sobre o número de casos envolvendo pensões de invalidez que chegam aos tribunais. Já junto da Provedoria de Justiça, os casos relacionados com a Segurança Social aparecem como os mais recorrentes, representando 27% de todas as queixas apresentadas em 2017, segundo o relatório anual desta entidade. E aqui também cabem os que se referem a queixas relacionadas com aposentações por invalidez. O número é baixo e tem-se mantido constante: foram 12 casos em 2014, 11 em 2015, dez em 2016 e nove em 2017.