O que André Ventura diz não se escreve
O oportunismo e a provocação do PNR aproveitam a mesma conjuntura que acolhe o Chega de André Ventura, que é tudo menos pacificadora.
Há um contraste descarado entre as duas manifestações agendadas para hoje na sequência das agressões policiais no bairro da Jamaica, no Seixal. Enquanto a família de um dos agredidos fez um apelo para que as pessoas se manifestem pacificamente em frente à câmara do Seixal, o PNR convocou um protesto para a porta da sede do BE, em Lisboa, de apoio à acção da PSP e contra a organização anti-racista SOS Racismo (que designa de “braço armado do Bloco de Esquerda”).
No primeiro caso, o que se pretende dizer é que há outras Jamaicas para além da que existe no Seixal e que há um denominador comum a todas elas: a discriminação e o estigma a que dificilmente escapa quem ali nasceu e vive. Os apelos à não-violência contrastam com os planos de um partido que convoca uma manifestação para a porta de um outro partido, algo nunca visto nas últimas décadas de democracia.
A escolha do número 268 da Rua da Palma não é inocente. Foi nesse edifício, então a sede do PSR, que a 28 de Outubro de 1989 um grupo de neonazis assassinou José Carvalho, um militante da direcção daquele partido — Pedro Grilo, o “skinhead” homicida escapou da prisão do Linhó como se escapa num grosseiro filme de domingo à tarde.
O oportunismo e a provocação do PNR aproveitam a mesma conjuntura que acolhe o Chega de André Ventura, que é tudo menos pacificadora. O ex-militante do PSD, apadrinhado por Passos Coelho e abandonado pelo CDS em Loures, pode dar-se ao luxo de defender a castração química para pedófilos, a pena perpétua, a redução do número de deputados e outras diatribes populistas para consumo de incautos e ao mesmo tempo entregar no Tribunal Constitucional um programa político assente na rejeição do racismo e na defesa da igualdade de oportunidades para todos.
Há dois aspectos neste contexto que convém não ignorar: o discurso xenófobo faz parte de uma receita de sucesso que partidos e movimentos tentarão rentabilizar por mimetismo, numa discrepância entre o que dizem e o que escrevem, e os incidentes do Seixal e os últimos acto de vandalismo são sinal de um desconforto social que é transversal a quem habita nas Jamaicas deste país.
O que diz André Ventura não se escreve por mero calculismo. O que diz quem vive num bairro como o da Jamaica não se ouve porque há territórios que são invisíveis no nosso quotidiano. Não podemos fingir que os ignoramos.
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