Mónica Calle dá ao público poder sobre o seu corpo

A partir desta quinta-feira, e até 7 de Fevereiro, a actriz e encenadora deixa-se habitar pelas palavras de Henry Miller. Rosa Crucificação tem lugar no Mise en Scène, em Lisboa, e implica o espectador na construção de uma intimidade.

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Paulo Pimenta
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No Verão dos seus 12 anos, “um Verão de puberdade”, Mónica Calle recusou-se a acompanhar os pais e os irmãos no período das férias dedicado à praia. Preferiu ficar entregue aos cuidados da avó, em São João do Estoril, abrigada do sol e da leveza dos entretenimentos estivais. Em vez disso, e “como não tinha nada para fazer, lia todos os livros que encontrava”. De A Morgadinha dos Canaviais a tantos outros de que a memória se livrou. Mas a procura por mais obras foi tão exaustiva que, às tantas, lá topou com “uns livros meio escondidos” na prateleira superior de uma estante. Intrigada, arranjou maneira de se elevar até à altura desses volumes, e descobriu alguns títulos ali armazenados pelos seus pais que eram um autêntico mini-curso em literatura erótica: “todos os livros do Henry Miller, A História de O, Casanova, coisas do Marquês de Sade”.

“Claro que achei aquilo muito mais interessante do que A Morgadinha dos Canaviais”, recorda a actriz e encenadora em conversa com o Ípsilon. “Fiquei entusiasmadíssima. Obviamente que, aos 12 anos, não tinha capacidade para apreender metade das coisas que estavam ali. Mas foram livros muito marcantes naquele momento.” Tanto assim que na bagagem de volta para casa dos pais, Mónica levou consigo vários daqueles volumes, entre os quais Trópico de Capricórnio, de Henry Miller. Era o primeiro e incisivo contacto com um autor a que só agora chega na sua carreira de criadora de espectáculos centrados na intimidade – foi, aliás, através do norte-americano e do livro O Tempo dos Assassinos, assim como do Corto Maltese de Hugo Pratt, que esbarrou no Rimbaud que se revelou fundamental no seu percurso. A partir de Rimbaud, Mónica criou, em 1992, um “monólogo-striptease” intitulado Virgem Doida, espectáculo fundador da sua companhia, a Casa Conveniente.

Desde o início, de facto, Mónica Calle tem desenvolvido uma prática teatral radicalmente pessoal, em que a intimidade, o sexo, o corpo (erótico e político) e o pudor entram em choque, construindo espectáculos que, com frequência, se destinam a uma partilha próxima com o público, reduzindo a escala até à relação de um intérprete para um espectador e deslocando as suas criações para longe de espaços convencionais. Como se, de cada vez, forçasse a porosidade entre a arte e a vida, não se limitando a criar canais comunicantes entre as duas mas sim confundindo-as o mais possível. Tudo isso encontramos agora em Rosa Crucificação, a sua proposta a partir da mítica trilogia de Miller (composta por Sexus, Nexus e Plexus), em cena no (autodescrito) erotic night lounge Mise en Scène, em Arroios, Lisboa, três noites por semana, em duas sessões diárias (19h30 e 21h30), até 7 de Fevereiro.

Mónica Calle começou a contaminar com materiais de Henry Miller a primeira fase da investigação para este espectáculo quando, durante um mês, no final de 2018, foi desenvolvendo um solo já intitulado Rosa Crucificação no espaço Rua das Gaivotas 6. Tal como acontecera com o Quarto Escuro que apresentara antes nas casas-de-banho da discoteca Lux, era novamente a escala de um-para-um que então lhe interessava. Desses encontros, revela ao Ípsilon, há-de abastecer-se para uma fase posterior do projecto, prevendo que possa vir a ficcionar algumas das histórias que foi recolhendo nesses vários encontros.

Agora, ao mudar-se para o Mise en Scène, a actriz e encenadora quis questionar quão elástica pode ser essa intimidade. Quis perceber, no fundo, se esse registo sobrevive a uma situação em que os espectadores passam de um para 15. Mónica acompanha cada visitante individualmente até ao piso inferior, trata-o pelo nome, passa-lhe a responsabilidade de algumas escolhas. Mas a dificuldade desta transição está lá. “Mais ainda num espaço como este, muito carregado e muito conotado com o que é”, diz. “Essa é uma dificuldade, tal como é trabalhar sobre o Miller. Porque apesar de falar da sexualidade e de haver muitas histórias para serem contadas, isto não é propriamente óbvio porque o Miller também não é isso – está sempre a deambular entre o pensamento, a arte, os relatos do quotidiano, o sexo, os encontros… É muita coisa.”

Piso inferior

Ao descer para o piso inferior do Mise en Scène, o público é convidado a instalar-se e a participar em escolhas que tanto dizem respeito ao figurino de Mónica Calle quanto à sala para onde se deslocará em seguida – quando a performance, de uma forma mais explícita, tiver início. Tratando-se de um recurso utilizado pela actriz para criar de imediato uma relação de partilha, Mónica predispõe-se de imediato a ser quase uma tela sobre a qual o público pode construir um imaginário particular. “Queria trabalhar sobre o imaginário das pessoas que vêm assistir”, explica, “porque este é o meu mundo mas é também o mundo delas. E nestes momentos da convocação do público gostava que isto fosse correspondendo a um imaginário individual, mas também comum, partilhado por cada um com o restante público, durante a duração do espectáculo. É aí que quero chegar.”

Calle quer, portanto, que esta intimidade se torne “voyeurista”, precisamente por se encontrar num “local em que o voyeurismo faz parte das fantasias individuais e colectivas”. O encaminhamento posterior para salas com temáticas distintas promove depois diferentes “propostas de encontros e de relacionamento” (sem se tornarem invasivas). Mas esta delegação da escolha no público é também uma tentativa clara de abordar o poder sobre o seu corpo que é oferecido aos espectadores. “De alguma forma”, acredita, “o intérprete e a sua força de trabalho são completamente proletários nesse sentido. Ou seja, estou a vender e mesmo a oferecer o meu corpo, e a colocar nos outros esse poder. Até porque o amor e o sexo envolvem sempre essas dinâmicas.”

Nesta fase, a fonte primordial de Mónica Calle tem sido Sexus, com algumas intromissões de Trópico de Capricórnio e Trópico de Câncer, outros títulos de Miller, ainda que as obras possam ser sempre adulteradas ou corrompidas por trechos autobiográficos. Quando a actriz diz que precisa de se esquecer de si, não pensar, apenas sentir, ou quando nos confidencia que há outra maneira de a alcançar que não passe pelo corpo, pouco importa se fala com palavras suas ou emprestadas por Miller. A luz baixa em que se esconde serve também para que a ambiguidade invada o espaço.

Um espaço que Mónica Calle ocupa sempre “cheia de dúvidas e com muito medo”. O medo, ampliado pelos períodos de crise artística e financeira que acabam por atirá-la para os espectáculos a solo, sublinhado pelas visitas constantes a estas temáticas, acabam depois por ceder ao prazer e à descoberta. Mas só quando, ao rodear-se de pessoas, também ela começa a deslindar que espectáculo é este que expõe com as defesas em baixo.

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