“Aqui eu posso até ir no shopping a pé com as minhas amigas”
Fogem da insegurança endémica, os brasileiros que estão a chegar numa torrente ininterrupta às escolas portuguesas: o PÚBLICO contou 1017 alunos brasileiros, num total de 22 agrupamentos. E continuam a chegar, segundo os directores das escolas.
“A professora de Matemática fala muito rápido. Parece que está fazendo um rap. Não entendo nada do que ela fala.” Acabadinha de chegar a Portugal, vinda de S. Paulo, no Brasil, Michele abre o livro dos seus 11 anos, para explicar como veio parar a esta escola, a Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, onde se contam já 78 alunos brasileiros. “Quando aterrei, junto com meus pais e a minha irmã, fiquei congelando dentro do táxi. Não entendia nada do que o moço falava.”
Um mês volvido, apesar da voz ainda tímida a procurar refúgio em tudo, resume em poucas frases aquilo que parece ser a principal motivação da nova vaga de brasileiros que estão a fixar-se em Portugal: “Lá, a padaria era minha vizinha de porta e mesmo assim a minha mãe não deixava eu ir porque tinha assalto directo. Aqui eu posso até ir no shopping a pé com as minhas amigas sem minha mãe ficar me perseguindo, preocupada o tempo todo por conta da insegurança.”
Tomando este agrupamento como amostra, os estudantes brasileiros vieram – e continuam a chegar - de todos os cantos do Brasil: numa ronda por 22 agrupamentos e escolas de todo o país, o representante dos directores das escolas, Filinto Lima, contou 1017 alunos brasileiros, a maioria dos quais recém-chegados. No Agrupamento de Escolas de Ferreira de Castro, em Mem-Martins, Sintra, há 186 alunos brasileiros. São 8% do total de alunos e já quase metade (48%) dos alunos estrangeiros matriculados nas cinco escolas do agrupamento. O director, António Castel Branco, diz que “é rara” a semana em que não chegam novos alunos vindos do Brasil. “Muitos entram com visto de turista. É óbvio que as crianças não têm culpa disso e nós acolhemo-las – não a todas, porque a escola está sobrelotada – mas, muitas vezes isso levanta-nos problemas, nomeadamente com a atribuição dos manuais escolares, porque não têm sequer número de contribuinte”, aponta.
“No Brasil, o ano escolar termina em Dezembro e eles chegam-nos em Janeiro, Fevereiro, Março. Quando assim é, e porque a preparação com que chegam é muito diferente da das nossas escolas, recomendamos aos pais que recuem um ano lectivo. Mas isto não é ‘chapa cinco’: há alunos que chegam muito bem preparados, sobretudo quando andaram em colégios privados no Brasil”, caracteriza o professor, para acrescentar que, apesar de a língua ser a mesma, a barreira linguística mantém-se: “Alguns vêm de zonas onde o português está muito mal dominado. Aí, apesar de a lei não o prever, sugerimos que frequentem as aulas de Português Língua Não-Materna.”
Cerca de 20 quilómetros mais abaixo no mapa, em Cascais, o director do Agrupamento de Escolas de Carcavelos, Adelino Calado, confirma os constrangimentos na integração inicial. “Mesmo no 1.º ciclo, a décalage em termos de preparação académica é notória. E, sobretudo os que vêm do Norte do Brasil, às vezes não conseguem perceber frases inteiras porque os sons são diferentes. Na maior parte dos casos, pedimos autorização dos pais para que eles recuem um ano”, descreve, para garantir que, ao fim de algum tempo, “estes alunos estão totalmente integrados”.
Estrato socioeconómico mais favorecido
Num retrato a la minuta deste novo contingente de alunos, e baseando-se apenas nas impressões que resultam das entrevistas com os pais, Adelino Calado arrisca dizer que “os brasileiros que neste momento estão a chegar são de um estrato socioeconómico alto, ao contrário do que se via há uns anos”. E “a maioria”, acrescenta, “aponta as questões da segurança como motivo para ter vindo”. “Aqui podem sair à rua e andar à vontade, o que para eles é uma maravilha”, confirma António Castel Branco.
Voltando a subir no mapa, de regresso à biblioteca da escola preparatória Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, Giovana, 14 anos e a frequentar o 7.º de escolaridade, depois de ter deixado o Rio de Janeiro, em Julho, aponta também a insegurança como gatilho para a mudança transatlântica de morada. “Lá não podia sair sozinha porque tinha o perigo de ser assaltada. Então, quando eu voltava sozinha da educação física, que acabava muito tarde para a minha mãe poder ir me buscar, ela ficava me ligando de cinco em cinco minutos: ‘Já chegou em casa? Quando chegar me avisa!’. Aqui, posso vir p’rá escola sozinha. São dez ou quinze minutos de autocarro”.
Tanto como a necessidade de fugir ao risco de um assalto em cada esquina, a procura de um ensino com mais qualidade também terá pesado na decisão de emigrar. “A escola pública brasileira parece estar nas ruas da amargura”, tinha aventado ao telefone Filinto Lima, director do agrupamento. Agora, sentada numa mesa redonda com nove alunos brasileiros, Letícia, 15 anos e a mais velha de três irmãs chegadas de Fortaleza, confirma-lhe as impressões. “Lá as aulas são bem mais focadas nos Enem [exames aplicados pelas universidades para seleccionar os alunos]. Então, você estuda para passar na prova, mais do que para aprender. Aqui as pessoas estão mais preocupadas com o conhecimento mesmo”, explica Letícia.
"Arroz de pato não existe lá"
O mais novo deste grupo, Pietro, 10 anos, nascido e criado no Recife, ainda está na fase de adaptação ao frio e ao português sem sotaque. “Estava habituado só com calor”, desculpa-se, para contar como há tempos ficou “rindo e comendo o almoço todo” em que lhe serviram, numa cerimónia religiosa evangélica em que participou com a família, arroz de pato. “Arroz de pato não existe lá”, gargalha.
Apesar da estranheza, Pietro gostou do arroz. E hoje palavras como “fixe” e “giro”, nunca antes ouvidas, já integram o seu vocabulário quotidiano. Quando lhe pedem impressões, diz frases como: “A escola portuguesa é fixe.” Mas há outras que hesita em adoptar: rapariga, por exemplo. “Lá no Brasil, é uma forma de ofensa”, contextualiza Nicole. Ana Carolina, 11 anos, e vinda em Agosto da cidade de Goiânia, no estado de Goiás, concorda e, como prova da sua integração, diz também que já encaixou a palavra “fixe” nas suas frases. “Agora eu gosto, mas, na primeira escola portuguesa em que andei, em Vale de Cambra, eles falavam que eu era pobre. Não davam moral comigo, não ajudavam. Não sei qual era o motivo, porque eu ia para a escola vestida normal. Chegava em casa todos os dias triste.”
Pelo contrário, Michele, que ainda está na fase de tentar decifrar a toada rapper da professora de Matemática, sentiu que o mais fácil foi “enturmar-se”. “Quando cheguei - tinha umas três meninas brasileiras na minha sala - consegui quase logo fazer amizade com todo o mundo.”
Apesar de se manterem ligados ao Brasil, via WhatsApp e Skype, nenhum pensa em voltar, não obstante o que dizem ser a expectativa depositada pelos pais no novo presidente, Jair Bolsonaro. “Os meus pais falam que vai tirar todo o mundo da crise”, reporta Michele. Os pais de Giovana “infelizmente, também apoiam Bolsonaro”. "Dizem que vai movimentar a economia, mas eu acho que vai também acabar com a população. Combater a violência com violência não dá." Pesem embora as expectativas em torno de Bolsonaro, nenhum dos pais destes miúdos parece admitir por enquanto somar o verbo voltar à viagem de vinda. Porquê? “Eles falam que a cada dez anos o Brasil passa por uma crise, então não tem conversa”, resume Giovana.