Consulado regressa a marcações online para evitar gente a dormir à porta
Há quem chegue 14 horas antes da abertura do consulado, durma ao frio e à chuva só para garantir que é atendida no próprio dia. Consulado teve "aumento exponencial" de atendimentos desde 2018. Vai voltar a ter marcação online a qualquer momento, garante cônsul.
Quando Evanilda, de 50 anos, chegou ao Chiado, ainda havia pessoal do Consulado do Brasil a trabalhar. Eram 18h de terça-feira. Há três anos em Portugal, precisa do certificado de antecedentes criminais para pedir a autorização da residência que nunca teve. Passou o final de tarde e a noite ao relento, na esperança de ser atendida e de que não iria perder nenhuma hora de trabalho na quarta-feira. “Vi o vídeo das filas na Internet, e não quero voltar, eu quero vir só uma vez”, comenta ao PÚBLICO.
Natural de Goiás, esta cidadã que é “babá” de uma família angolana é a primeira da longa fila que pelas 6h de quarta-feira se forma à porta daquela instituição desde o dia anterior. “Fiquei sentada, deitei. Depois não tem casa-de-banho, tem que ficar e aguentar, estamos esperando para [o consulado] abrir.”
As madrugadas daquela rua têm sido assim: há papelões castanhos espalhados pelo passeio a protegerem os corpos do frio, mantas, edredons, almofadas, tendas, sacos com comida, água. Sacos de plástico e mochilas não faltam. Gente que trouxe o computador para ir trabalhando e entretendo-se porque o frio e o barulho não deixam dormir.
Dezenas de pessoas passam ali a noite à espera de ter a senha que lhes permita autenticar documentos como certificado de antecedentes criminais, procurações, renovar o passaporte… A humidade e chuva que caem de manhã tornam a tarefa mais dolorosa. Os carros passam. Houve-se o buzinar do eléctrico 28, que ainda não vai cheio de turistas.
Dois dias depois, na sexta-feira, José Roberto Pinto, cônsul do Brasil, diz ao PÚBLICO que irão voltar a ter um sistema de marcação online para evitar que aquelas filas persistam – nesta sexta-feira estavam à espera que o sistema começasse a funcionar a qualquer momento; no período de transição, as senhas ainda serão distribuídas à porta durante cerca uma semana. "Somos sensíveis a essa situação", diz o cônsul.
O cônsul não sabe precisar há quanto tempo existem aquelas filas, mas diz ao PÚBLICO que em Novembro foi imposto um limite de senhas depois de um “aumento exponencial” nos atendimentos – para se ter um termo de comparação, só em relação ao certificado de registo criminal, documento necessário para obter a regularização e aquele que é o mais solicitado, o número de pedidos mais do que duplicou, passando de 13.673 em 2017 para 31.129 em 2018.
Diariamente, no início de 2018, atendiam uma média de 300 pessoas; em Setembro eram mais de 700. Começaram a abrir às 8h em vez de às 9h. Isto deve-se a uma provável subida da imigração mas também de turistas, afirma o cônsul, que não tem dados de 2018 sobre chegadas de brasileiros uma vez que só o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) o regista. Sabe-se que em 2017 já tinha aumentado em 5% o número de brasileiros a viver em Portugal.
Negócios paralelos
Mas com as filas à porta do consulado, apareceram os negócios paralelos. Num dos primeiros "postos", e de “plantão” desde as 21h, Carlos Maurício aponta para três pessoas que estão na fila do consulado pela terceira vez, porque nas duas primeiras não foram atendidas.
Vive há quatro anos em Portugal, como professor de inglês particular e aluga um quarto numa casa na zona do Rato; imigrou por causa “da segurança”, justificação referida pela maioria dos entrevistados.
Pouco depois chega Pedro Vilela, quase 70 anos, ex-bancário, que é reformado. Cumprimenta-o, Carlos diz que está a dar uma entrevista. “Estava a guardar lugar para ele”, explica-nos. “Somos amigos”. Natural do Rio, Pedro Vilela viveu em São Paulo durante décadas. Está há dois meses com a mulher em Lisboa. “Viemos aproveitar a comida, os vinhos e a segurança de Portugal”, diz.
Passa um homem com um molho de panfletos a anunciar uma loja de produtos brasileiros logo “aqui em cima” - bebidas, biscoitos, temperados: “Tem muita coisa boa, só não tem corrupção”, diz o senhor.
Pedro Vilela foi ao consulado porque tem de tratar da carta de condução. “Isso é uma falta de consideração pelo povo brasileiro”, afirma. Carlos Maurício vai embora, cede-lhe o posto. “Depois eu te ligo”, diz. Perguntamos se lhe pagou para ficar ali durante a noite. “Não, não”, afirma. “É meu amigo”.
Júnior Juliano, 32 anos, que faz biscates como independente, entra na conversa. “Há gente na Internet vendendo lugar na fila por 50 euros, isso são mais de dois dias de trabalho”, lamenta. “Acho errado, infelizmente aproveitam-se das tristezas dos próximos”, comenta a mulher, Aline Aguiar, 27 anos. “Se for o caso de alguém que não pode, que precisa, tudo bem. Mas estamos aqui em Portugal para melhorar, agora pagar para estar numa fila acho errado. ”
Num grupo do Facebook, Apoio a brasileiros em Lisboa, há vários posts sobre as esperas no consulado, gente a pedir um saco de cama emprestado para passar a noite na fila, ofertas de lugares num carro por 50 euros para ir ao consulado do Porto ou de Faro. “Engraçado o povo falar que Faro e Porto ‘ta mais rápido…Quem tem 100 euros para desembolsar? Pra tirar antecedente criminal? Eu não!”, comenta uma mulher num post. Outra pessoa escreve: “Estou agora no Consulado do Brasil em Faro, com minha esposa, confirmo e testemunho aquilo que todos têm dito: poucas pessoas e nenhuma fila”. Contras, alerta: 85 euros para bilhetes de comboio para duas pessoas.
Aline e Junior estão aqui desde as 21h, precisam de pedir o registo criminal e uma procuração para vender um bem que têm no Brasil. Naturais de perto de Curitiba, vieram “ver como é Portugal, tentar a vida”. Ela está a trabalhar num oculista, a adaptar-se depois de ter sido secretária no Brasil: “Vamos encaixando aos poucos”, diz. Os dois sentem que a vida é mais fácil e mais barata em Portugal.
Há várias pessoas a distribuir cartões oferecendo serviços para tratar da burocracia. Um funcionário de uma papelaria no Largo de Camões circula a perguntar se alguém precisa de tirar cópias ou alterar o certificado de registo criminal por 5 euros. A mulher de Otoniel Sousa tinha um documento no qual se enganou num nome e por isso, como último recurso, aceitou os serviços. Acompanhamo-los debaixo da chuva à papelaria onde dois jovens com computadores introduzem os seus dados e depois uma máquina imprime o documento.
Patrícia Santos, assessora jurídica, critica o consulado por ter acabado com o sistema de agendamento electrónico que “era muito mais organizado”. Participou numa petição que pede a reorganização do consulado e a retoma o sistema de agendamento electrónico. Começou a alertar os serviços no Verão, diz. “É Inverno, há chuva, todos ficam ao relento. Isso é um tratamento desumano. A constituição brasileira prevê que todos devem ser tratados da mesma forma mas isso não está acontecendo. Parece mais uma fila de cadeia, nem bandido é tratado desta forma”, afirma.
Faltavam 15 minutos para as 8h quando as portas abriram. Pouco depois Evanilda sai, enfrentando ainda a multidão à espera. “A moça atendeu quatro pessoas ao mesmo tempo. Não demorou nem cinco minutos!”, diz sorridente. Foram 14 horas à espera de algo que se fez em cinco minutos.