A corrupção e a liberdade de expressão
A liberdade de expressão não vale só para as opiniões simpáticas mas também para aquelas que “ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou parte da população”.
Anatol Matasaru é um cidadão moldavo e um activista no combate à corrupção naquele país. Em 2013, a sua forma de combate à corrupção consistiu numa manifestação artística em frente à Procuradoria-Geral da República (PGR). Não fez como o casal que está, há anos e anos, acampado – durante o dia – em frente à nossa PGR com um cartaz onde descrevem a forma como foram vítimas de uma fraude praticada por dois irmãos. Anatol Matasaru preferiu colocar em frente à PGR moldava duas esculturas da sua autoria: um pénis erecto em madeira com dois metros de altura, com um colarinho branco, uma gravata e a fotografia de um importante político nacional colada no topo e uma grande vulva com fotografias de procuradores entre os lábios. Aproveitou, ainda, para encher balões com a forma dos genitais masculinos que espalhou pelas árvores próximas.
Uma hora depois, as esculturas foram retiradas pela polícia e o activista levado para a esquadra e, posteriormente, julgado por hooliganismo e condenado a uma pena de prisão de dois anos suspensa, sendo que o inquérito criminal foi instruído pelo departamento que era dirigido por um dos procuradores cuja fotografia estava colada na escultura da vulva. Para os tribunais moldavos, as esculturas eram obscenas e a ligação das mesmas com as imagens dos políticos e dos procuradores ultrapassavam a, assim designada, crítica aceitável. Além disso, Anatol Matasaru era, aos olhos do tribunal, incorrigível, pelo que merecia uma lição já que tinha sido condenado no pagamento de multas pela prática de manifestações públicas do género e não tinha aprendido a fazer esculturas aceitáveis.
Os recursos subiram até ao Supremo Tribunal moldavo, alegando Matasaru que as esculturas eram uma forma de expressão artística e reiterando que a sua manifestação era uma acção de protesto contra a corrupção existente dentro da PGR e no seio dos políticos, factualidade que não precisava ser provada por ser do conhecimento público. Alegava, ainda, que, de qualquer forma, a pena aplicada era excessivamente dura mas, como era previsível, não teve sucesso. Queixou-se, então, Matasaru ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por ter sido violada a sua liberdade de expressão.
Na passada terça-feira, o TEDH deliberou sobre o assunto: em primeiro lugar, lembrou o TEDH que o respeito pela liberdade de expressão é uma das condições básicas para o progresso de uma sociedade democrática e para a auto-realização individual. Depois, reiterou que a liberdade de expressão não vale só para as opiniões simpáticas ou inofensivas mas também para aquelas que “ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou parte da população”, assim o exigindo o pluralismo, a tolerância e abertura de espírito sem as quais não existe sociedade democrática.
Deu, em seguida, alguns exemplos de formas de protesto incómodas e desagradáveis mas que cabem dentro da liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), como foi o caso da exposição de roupa suja junto ao parlamento húngaro que apresentava a “roupa suja da nação”, ou, ainda, a actuação da banda musical Pussy Riot numa catedral de Moscovo em protesto contra Putin.
Passou, então, o TEDH a analisar se a condenação de Matasaru, isto é, se a interferência do Estado moldavo na liberdade de expressão de Matasaru, correspondia a uma necessidade social premente numa sociedade democrática, critério último para determinar se foi ou não violada a liberdade de expressão que cabe ao TEDH garantir. E o TEDH salientou, desde logo, que os tribunais moldavos tinham entendido erradamente que a conduta de Matasaru não se inscrevia no âmbito da liberdade de expressão garantida pela CEDH. No entender do TEDH, os tribunais moldavos não tinham feito uma correcta ponderação dos interesses e valores em jogo, nunca se justificando uma pena de prisão, ainda que suspensa, para a actuação de Anatol Matasaru.
Para o TEDH, uma pena de prisão, ainda que suspensa, em casos de liberdade de expressão, tem repercussões negativas não só no condenado mas também tem um efeito inibidor de outras pessoas, desencorajando-as de se exprimirem livremente. E o TEDH condenou, assim, a República Moldava por violação da liberdade de expressão.