Uma lista não é apenas uma lista: uma pequena reflexão sobre as melhores exposições do ano

A 21 de Dezembro de 2018 o PÚBLICO apresentou a lista das melhores exposições de 2018, um rol de exposições individuais realizadas por artistas homens, todos portugueses. Apenas no último lugar da lista surge uma exposição realizada por uma mulher. Nesta lista e, consequentemente, naquilo que o PÚBLICO considera o que de melhor se apresentou no campo das artes visuais em território nacional durante o ano de 2018 não existem nem vozes colectivas nem vozes estrangeiras. Será esta lista um retrato do país e das instituições que apresentam arte contemporânea? Será que nenhuma das inúmeras exposições colectivas apresentadas no país foi capaz de cruzar o limiar de qualidade do jornal? E em relação aos artistas internacionais? Será que, comparativamente aos seus congéneres portugueses, e de acordo com os critérios de inclusão e exclusão delineados pelo jornal, ficaram sempre aquém? Será que os artistas portugueses, baseados apenas na sua nacionalidade, são sempre melhores que os artistas não portugueses? E as exposições realizadas por artistas mulheres? A não existência, ou a muito limitada existência, de mulheres nesta lista significa que o jornal acredita que os homens são efectivamente melhores artistas que as mulheres e que a identidade de género é um factor essencial na definição da qualidade das práticas artísticas contemporâneas? Estas são questões complexas, que não podem ser escamoteadas ou tratadas de forma ingénua ou inconsequente pelo principal diário do país. Tentaremos de seguida delinear uma reflexão sobre estas questões e as suas consequências no que diz respeito ao desenvolvimento de um entendimento alargado sobre o campo das práticas artísticas contemporâneas a partir de dois eixos principais: o da pretensão à objectividade e o das políticas de representação.

A narrativa da qualidade encontra-se nos antípodas da noção de gosto. Enquanto a primeira é objectiva e normativa (os melhores versus os piores, aquilo que vale a pena manter na memória colectiva versus o que queremos que seja esquecido) a última é fundamentalmente subjectiva e, por isso, o resultado de negociações complexas entre contexto, aspectos pessoais, afectos, etc. Uma não pode nunca ser tomada pela outra. No caso da lista publicada pelo PÚBLICO, não temos acesso aos critérios de avaliação, nem à amostra a partir da qual os melhores foram seleccionados. Temos apenas um resultado, sem qualquer indicação do processo que a ele conduziu, não permitindo assim entender, contextualizar ou avaliar a objectividade efectiva da lista. Foquemo-nos brevemente num dos elementos que nos parece ser estruturante do conteúdo da lista, o universo de exposições a partir da qual a escolha foi realizada. Ambos os críticos do PÚBLICO residem em Lisboa, tendo assim acesso facilitado às exposições que decorrem na capital. Isto cria um enviesamento regional, o qual tem um efeito directo no universo disponível de exposições a partir do qual as melhores são escolhidas. Independentemente da sua qualidade, e de acordo com este modelo, exposições que não foram vistas são exposições que não existiram. Uma lista das melhores exposições do ano em que o universo de escolha é uma pequena amostra não representativa de tudo aquilo que se apresentou em território nacional não pode nunca ser a lista das melhores exposições do ano, mas apenas uma selecção, delimitada pelas zonas de gosto e interesses dos críticos, do número limitado e geograficamente restrito daquilo a que tiveram acesso durante o ano. Acessibilidade não pode nem deve ser confundida com qualidade e este é um dos problemas da pretensa objectividade e da narrativa da qualidade associada ao exercício publicado pelo PÚBLICO.

Uma proposta centrada num conjunto de listas individuais, assinadas pelos críticos do jornal, mas também por outros agentes do meio, oriundos de varias regiões e com campos de interesses diversificados, cuja tónica seja colocada na natureza subjectiva da escolha, ao invés da pretensa qualidade das exposições, poderia dar conta da polissemia que caracteriza o campo de forma bastante produtiva, apresentando a diversidade de interesses dos seleccionadores e deixando emergir de forma espontânea as exposições que marcaram o ano de forma significativa.

Do ponto de vista das políticas da representação o assunto não melhora. É importante reflectirmos, e é importante o PÚBLICO reflectir sobre o que uma lista destas diz para além daquilo que acredita estar a dizer. Poderíamos abordar esta questão de muitos ângulos (como já mencionámos, a inexistência de artistas internacionais, por um lado, ou a inexistência de exposições colectivas, por outro), mas foquemo-nos no da representação de género. A lista das melhores exposições de 2018, tal como foi publicada, reproduz acriticamente, e pela enésima vez, estruturas de poder patriarcais e heteronormativas, além de naturalizar um enviesamento de género a partir da construção da narrativa da qualidade. Porque das duas, uma: ou o jornal está, ano após ano, a dizer que os homens são, por defeito, melhores artistas do que as mulheres (o que, como posição, é indefensável; a qualidade da subjectividade artística não está ligada ao cromossoma Y) ou há um problema endémico de representação que ninguém quer debater. Partamos de um conjunto de pressupostos que qualquer pessoa aceitará facilmente: a) há tantos artistas homens como mulheres; b) tanto elas como eles expõem em números comparáveis; c) os homens não são, por defeito, melhores artistas que as mulheres. A questão que é então urgente colocar é a de tentar compreender como se chega sempre a listas em que a distribuição das melhores exposições individuais por género é a seguinte: 2018) 1 mulher, 9 homens; 2017) 3 mulheres, 5 homens; 2016) 0 mulheres, 8 homens; 2015) 1 mulher, 5 homens; 2014) 1 mulher, 9 homens. Ainda que estes resultados sejam consequência directa das escolhas dos críticos, é fundamental que o PÚBLICO reflicta sobre as consequências sociais, éticas e políticas destas publicações, sendo responsabilizado por ser, ainda que não intencionalmente, um agente activo de uma política de discriminação de género através da construção de uma narrativa da arte contemporânea que exclui metade de quem a pratica com base no facto de ser homem ou mulher. A questão torna-se mais preocupante ao assumirmos que um jornal tem responsabilidade e um papel fundamental na construção de uma esfera pública. O que significa e qual o impacto de dizer a metade da população, ano após ano, que a sua subjectividade não importa? Que o que têm a dizer não interessa? Quais as consequências de dizer às jovens estudantes, às artistas que estão em principio de carreira e até mesmo às artistas com um longo percurso que, independentemente do que façam, de como façam e para quem façam, os homens serão sempre melhores do que elas? Quais as consequências de dizer aos homens que são melhores que as mulheres?

É necessário uma política editorial para as artes visuais, e não só, que pense criticamente em todas estas questões e que seja propositiva nas suas respostas. Que não se deixe seduzir pela ideia de que uma lista das melhores exposições é apenas isso, uma lista das melhores. É necessário uma política editorial que reconheça que uma lista das dez melhores exposições do ano que inclua nove exposições individuais de homens portugueses é apenas um reflexo dos gostos e interesses de apenas duas pessoas, e do compromisso possível entre ambas. Que é um reflexo de estruturas de poder patriarcais e heteronormativas que se auto-reproduzem sistematicamente e que excluem como mecanismo de auto-preservação. Que é um reflexo de tudo isto e muito, muito mais mas, infelizmente, não é um reflexo da qualidade daquilo que aconteceu em 2018 nas artes visuais em Portugal.

Curadores, Codiretores da Kunsthalle Lissabon

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