Directores de museus e monumentos queixam-se de "carência dramática" de recursos
Responsáveis reunidos esta tarde no Parlamento para debater a proposta de autonomia que o Governo quer fazer entrar em vigor ainda este ano garantem que o diploma é "insuficiente" para lidar com a suborçamentação e os constrangimentos administrativos. Ainda assim, admitem alguns, é "melhor do que não fazer nada".
A "carência dramática" de recursos humanos e a suborçamentação dos museus e monumentos do país foram denunciadas esta tarde, no Parlamento, por directores e entidades representativas do sector, que consideraram a proposta de autonomia da tutela "insuficiente" para as resolver.
Preocupações, receios e apelos fizeram-se ouvir nas intervenções dos cerca de cem directores, conservadores, técnicos e outros responsáveis que acorreram à audição pública sobre a proposta de lei de autonomia dos monumentos, palácios e sítios arqueológicos.
A falta de financiamento, a degradação dos monumentos, a falta de recursos humanos e o excesso de burocracia foram algumas das críticas mais repetidas por parte dos que responderam a esta iniciativa da comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, na sequência de um requerimento do grupo parlamentar do PCP aprovado por unanimidade. Na passada quarta-feira, o assunto já fora objecto de uma reunião de trabalho convocada pela ministra da Cultura, durante a qual o actual director do Museu Nacional de Arte Antiga, António Filipe Pimentel, anunciou que não tenciona recandidatar-se ao cargo e teceu fortes críticas à proposta de diploma.
Na audição desta tarde, Nuno Vassallo e Silva, ex-director-geral do Património Cultural, pronunciou-se contra o projecto da tutela, sustentando que este regime de autonomia "não é a solução para a falta de recursos humanos e financeiros, e [de] planeamento estratégico". "Este diploma não é exequível porque levanta questões técnicas. Mas há soluções, formas de criar uma gestão mais flexível, conjunta, com partilha de responsabilidade, sem necessidade de uma legislação mais larga", defendeu.
Em causa está o novo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos, que o Governo pretende fazer entrar em vigor este ano.
O documento – sobre o qual o anterior ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, foi ouvido, nesta comissão, em Outubro do ano passado – abrange o conjunto de unidades orgânicas dependentes da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e das Direcções Regionais de Cultura.
A delegação de competências nos directores dos museus, a redução da burocracia e o maior acesso dos equipamentos às receitas que geram são alguns dos objectivos da proposta. Mas para a directora do Museu Nacional Soares dos Reis, Maria João Vasconcelos, as "boas intenções" do diploma não resolverão os principais bloqueios com que os responsáveis do sector se deparam actualmente: "Na prática é uma mera delegação de competências, que é importante, mas não corresponde a uma verdadeira autonomia dos museus. O principal problema é a falta de recursos humanos", opinou, apontando que "tem havido grandes constrangimentos e um travão a todas as tentativas de experiências que se poderiam fazer".
Jacinta Bugalhão, do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia, considerou positiva a iniciativa legislativa, por ser uma ambição antiga do sector, mas mostrou dúvidas sobre a sua capacidade para resolver "os problemas dramáticos" da área, nomeadamente ao nível dos recursos humanos e da progressão de carreiras, acrescentando esperar que seja "revista e melhorada".
Já Luís Raposo, presidente do Conselho Internacional dos Museus – ICOM Europa, uma das entidades consultadas pela tutela durante o período de auscultação dos agentes do sector, comentou que este projeto "tem aspectos positivos e negativos": "O mais preocupante para todos os responsáveis é repor os quadros de pessoal e evitar uma perda de conhecimento, e até o risco de encerramento de museus", alertou, acrescentando que, apesar das insuficiências da proposta, "é melhor que se avance com o que está previsto do que não fazer nada".
Também o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS Portugal interveio, através da sua presidente, Soraya Genin: "Não se trata de autonomia, mas sim de uma tentativa de melhoria da gestão. Contudo, continua-se dependente de uma super-hierarquia", avaliou, defendendo que esta "seria uma oportunidade óptima para melhorar uma área que está muito secundarizada".
Por seu lado, a directora do Mosteiro dos Jerónimos, Isabel Cruz de Almeida, lamentou que não exista nestas entidades "um fundo de maneio que resolva um simples problema de uma casa de banho, que implica um processo burocrático, com o tempo excessivo que demora, e as [subsequentes] reclamações": "Há um problema gravíssimo de recursos humanos e de segurança nos monumentos mais visitados do país", alertou.
Na mesma linha, o director do Mosteiro da Batalha, Joaquim Ruivo, falou em "constrangimentos e dificuldades inadmissíveis", argumentando que os monumentos cujo elevado número de visitantes torna autossustentáveis estão também sujeitos à pressão de "maiores despesas". "Este decreto parece-me uma manta de retalhos, mas abraço-o porque traz também benefícios", disse ainda.
José Alberto Ribeiro, presidente do ICOM Portugal, considerou que "a proposta fica muito aquém" do que o sector desejaria, mas sublinhou que aquele organismo não dispõe da mais recente versão do documento. A proposta de lei que lhe foi entregue no ano passado, disse, "não resolve os problemas dos museus, palácios, monumentos e sítios".
"Há um problema gravíssimo que é a suborçamentação contínua e acelerada, os recursos humanos", apontou, na linha dos comentários dos seus homólogos, prevendo que daqui a cinco anos muitos dos equipamentos vão ficar sem metade dos seus funcionários, devido à vaga de aposentações que a idade-média dos actuais quadros faz antever.
Da parte da Associação Portuguesa de Museologia (APOM), o presidente João Neto considerou a proposta "um mau documento": "Nós somos contra e merecíamos mais do que isto. Qual é a pressa?", questionou, disponibilizando-se para continuar a trabalhar com o Ministério da Cultura sobre esta matéria.
Partidos divididos
Na segunda parte do debate, em que intervieram os grupos parlamentares, a proposta de autonomia que o Ministério da Cultura tem em mãos foi considerada uma "oportunidade" para "ir mais além" e proporcionar mais recursos humanos e financeiros ao sector. Mas os partidos da oposição vincaram as suas críticas: José Carlos Barros, deputado do PSD, disse que o partido já era "muito crítico" em relação ao diploma e que, depois de ouvir os representantes do sector, ficou ainda "mais preocupado".
"É assustador não saber qual é a versão actual da proposta em cima da mesa", frisou, estranhando que "o Governo continue a achar que não há nada a discutir neste processo". O deputado recordou que o PSD fez uma pergunta regimental sobre o processo em Agosto do ano passado, "mas até hoje não obteve qualquer resposta". "Foi uma proposta elaborada em segredo. Tudo o que soubemos foi pela comunicação social", acrescentou, louvando o debate que se realizou esta tarde.
Por seu turno, Carla Sousa, deputada do PS, lembrou que o Parlamento já teve uma sessão de trabalho com o anterior ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, sobre esta matéria. "A tutela está a melhorar o documento e eu não vejo isto como um mau prenúncio. Isso é de saudar", salientou a deputada socialista, acrescentando que o documento será o resultado das reuniões com algumas entidades representativas do sector, realizadas desde o ano passado.
A proposta, que aguarda ser levada a Conselho de Ministros, "é um ponto de partida, e está em curso um processo de diálogo gerado em consenso entre as entidades e o Ministério da Cultura", .
Por seu lado, Luís Monteiro, do BE, considerou importante o debate da matéria, não só na Assembleia da República, mas também na comunicação social, no sector e na sociedade.
"Esta proposta tem princípios que importam, nomeadamente garantir mais autonomia a estes organismos, mas não há mais autonomia sem recursos", defendeu o deputado, sustentando a necessidade de um "compromisso político" em relação aos recursos humanos e financeiros para os profissionais.
O deputado disse ainda que o BE concorda com o concurso internacional para directores destes organismos, e que exista um Conselho Consultivo com uma voz formal a trabalhar directamente com as direções, os órgãos autárquicos e a sociedade civil.
Teresa Caeiro, deputada do CDS-PP, disse que os directores de museus que ouviu esta tarde são "heróis", face às "restrições e situações de ruptura nestes espaços".
"O texto que temos agora entre mãos é uma oportunidade perdida. Uma história de promessas não cumpridas e de avanços e recuos. Estamos a oito meses do fim da legislatura e, na verdade, foi logo em 2016 que o primeiro-ministro prometeu que iria elaborar um projecto para a autonomia financeira e de gestão", vincou.
A parlamentar defendeu que um dos aspectos fundamentais nesta matéria está no "peso excessivo" da Direção-Geral do Património Cultural e também lançou a pergunta: "Como é possível atribuir autonomia sem número de identificação fiscal, onde está a autonomia real?".
Ana Mesquita, deputada do PCP, defendeu que este é um tema relevante e uma "oportunidade", à partida, pela discussão da matéria, para "escolher qual o caminho a seguir".
"A troca de ideias é valiosa para definir um caminho e foi importante conhecer os principais problemas. Saímos mais ricos e mais preparados para futuras discussões", disse, acrescentando que o conhecimento da realidade é relevante para criar propostas.
A deputada disse ainda que "também é importante que o Estado assuma as suas responsabilidades, desde logo no financiamento". "Um dos princípios fundamentais é o da preservação do serviço público, evitando quaisquer tentações de mercantilização ou privatização", defendeu.