Abuso psicológico pode afectar um quinto dos idosos. Os mais pobres, sós, doentes
Idosos que têm dificuldades em pôr comida na mesa, os mais pobres, os que têm sintomas depressivos e os que vivem sozinhos revelam-se mais vulneráveis. As mulheres são as principais vítimas, identificou um estudo da Universidade do Porto.
Na velhice, a violência tende a coexistir com a debilidade socioeconómica e de saúde das vítimas. Como em qualquer idade, a afectar os mais dependentes. Um estudo da Universidade do Porto aponta para uma prevalência de 20% de abuso psicológico entre os mais velhos. Aqueles que têm dificuldades em pôr comida na mesa, os mais pobres, os que têm sintomas depressivos e os que vivem sós relevam-se mais vulneráveis. E as mulheres são as principais vítimas.
Estas conclusões têm por base as respostas de 677 pessoas com 60 ou mais anos residentes no Porto a um extenso questionário e as entrevistas mais aprofundadas feitas a 45 delas por uma equipa de investigadores do Instituto de Sociologia (ISUP) e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), no âmbito do projecto HARMED: o abuso de idosos: determinantes sociais, económicas e de saúde. Estas são as primeiras conclusões.
O abuso psicológico é o mais prevalente – um quinto (19,9%) dos inquiridos declarou ser alvo – e é o motivo por que a socióloga Isabel Dias, investigadora responsável, fala na necessidade de melhorar a detecção destes abusos, mais vísiveis mas quase sempre silenciosos, mas “tão incapacitantes como a violência física”. São insultos, maus tratos verbais, humilhações, situações de isolamento forçado e privação de direitos de gestão da própria vida.
As vítimas são principalmente as mulheres (22,7% das entrevistadas). A ausência de redes familiares e de conforto financeiro tende a agravar a exposição a abusos psicológicos: reconhecem-se como vítimas 23,8% dos inquiridos na casa dos 70 anos, 20,8% dos que vivem sozinhos, 23,8% dos que consideram o seu rendimento insuficiente ou muito insuficiente.
“Considerando a experiência de abuso, de qualquer tipo, são as vítimas de abuso psicológico que apresentam os menores níveis de suporte social (62,7%) e maior ocorrência de sintomas depressivos”, aponta a socióloga Isabel Dias. Também são mais negativas na avaliação do seu estado de saúde geral e tendem a manter-se longe dos serviços de saúde, mesmo quando precisam deles. Genericamente têm uma menor expectativa de vir a ser felizes.
A dependência que fragiliza
Para António Fonseca, professor na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, a principal questão é a dependência. “A pessoa idosa só por si não é necessariamente mais vulnerável. Estar dependente de outros, em qualquer idade, limita a reacção, a queixa, fragiliza-a imediatamente.”
Compreende-se, por isso, o peso que assume a segurança alimentar (determinada neste estudo, por exemplo, pelo número de refeições que a pessoa faz e o motivo por que deixa de comer). Uma percentagem esmagadora – 72,7% – dos que declararam ter muitas dificuldades em colocar comida na mesa viam-se também vítimas de violência psicológica.
Os mais escolarizados estão igualmente expostos: 22,8% das vítimas de abuso psicológico inquiridas completou o ensino secundário. Este dado deve ser lido com cautela, frisa Isabel Dias. Pode ser produto das escolhas metodológicas ou da capacidade de se reconhecer como vítima. “Percebemos que o abuso psicológico é transversal. Mas idosos mais escolarizados têm condições para melhor reconhecer o que é ou não abuso psicológico”, acautela a socióloga.
“Temos muita dificuldade que as pessoas falem”, torna António Fonseca. “O berrar, o dar ordens, o não retirar de casa: há uma série de comportamentos que uma pessoa com algum grau de incapacidade, fragilizada encara como natural. O que não se distancia muito das situações de abuso ou mau trato no namoro ou [relações] conjugais.”
À violência psicológica segue-se o abuso financeiro (5,8%) – apropriação indevida de bens e propriedades, por exemplo –, o abuso físico (2,5%) e sexual (1,9 %). Em geral, o perfil dos mais vulneráveis repete-se. À excepção do abuso físico, que o estudo mostrou ser mais prevalente entre os idosos pouco escolarizados.
Cônjuge ou companheiro
As redes sociofamiliares e a inserção na comunidade são vistas como factores protectores do abuso. Quem vive sozinho – cerca de 407 mil pessoas com mais de 65 anos em 2011; hoje serão muito mais – tende a estar mais exposto nos vários contextos. É comum que a vítima identifique alguém próximo como agressor – um cônjuge ou companheiro (32,6%), filhos (22,9%), irmãos (14,1%), vizinhos (14,1%) –, mas os abusos e situações de neglicência acontecem também em contexto de cuidados informais e em instituições.
“A vigilância, o controlo, a repressão sobre os idosos, frequentemente em contexto institucional, poderá também ser considerado mau trato”, aponta António Fonseca. A ausência de estímulo, de cuidado, de contacto pode deprimir as vítimas. “O contexto que não as ajuda a expressar-se, dificulta a própria reclamação do que está a acontecer.” Há o medo de que a queixa piore a situação. Muitas vezes também não há outra alternativa de cuidados.
"Conseguir dar o salto é um passo extremamente doloroso, para além da dificuldade em chegar às instâncias oficiais", nota Teresa Morais, procuradora do Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, que coordena uma secção dedicada à investigação dos crimes de violência doméstica e maus tratos. Quando o faz, "depois dos obstáculos interiores que teve que ultrapassar, depara-se com um muro", aponta. "Afasta-se o cuidador agressor e a alternativa é a institucionalização, a desenraização do idoso? O sistema não lhe responde."
“Temos que ser muito mais vigilantes no modo como as institucionais e as famílias cuidam das pessoas”, alerta António Fonseca.
Os abusos, principalmente psicológicos, tendem a ser contínuos.
Podem, por isso, agravar os factores considerados de risco e gerar novos, nota Isabel Dias. “Estes dados evidenciam a necessidade de colocar no centro das agendas das políticas sociais e de saúde a problemática dos abusos a idosos, tendo em conta a acumulação de vantagens de natureza socioeconómica, ligadas à condição de saúde e à vulnerabilidade de género [ver texto ao lado].”
Os investigadores estão agora a aprofundar estas questões. Procuram compreender o impacto do contexto de crise socioeconómica dos últimos anos, 2008 a 2014 sobretudo, no agravamento dos factores de exposição e vulnerabilidade de pessoas idosas a abusos. E estabelecer relações de casualidade entre eles.
O projecto de três anos, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, termina no final do ano. Participam as investigadoras Alexandra Lopes e Rute Lemos, do ISUP, e Diogo Costa e Sílvia Fraga, do ISPUP.
A amostra com que trabalham tem origem na base EPIPorto, uma coorte populacional do ISPUP, que acompanha 2485 maiores de idade residentes no Porto, desde 1999. Desde então esta tem sido avaliada. O projecto integra a terceira reavaliação desta população, feita em 2017 e 2018.