As notícias da morte do cinema foram exageradas? Nunca se fez tanto dinheiro nas bilheteiras do planeta

As receitas da indústria devem bater recordes globais em 2018, mas o fenómeno não é extensivo a Portugal, onde o número de espectadores voltou a cair. O mundo foi ao cinema ver Vingadores, Black Panther, The Incredibles ou Bohemian Rhapsody. E filmes Netflix.

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Black Panther foi o filme mais visto e mais rentável nos EUA em 2018 DR

Se o cinema teve um ano bom no mercado planetário, isso deve-se aos Estados Unidos – não só como produtores dos filmes mais populares em muitos países, mas também como consumidores. 2018 deve render à indústria, em termos globais, uma receita-recorde de 36,4 mil milhões de euros, alimentada pela habitual dieta de super-heróis, animação e sequelas que saciou o mercado interno norte-americano mas também os espectadores chineses, decisivos para as contas finais. Já mercados europeus como o francês ou o português estão em contracção: depois de cinco anos sempre a subir, os portugueses foram menos ao cinema em 2018.

Do outro lado do Atlântico, imune a estas quebras, o mercado cinematográfico norte-americano deve bater um novo recorde de receitas brutas de bilheteira, ultrapassando pela primeira vez os 10,3 mil milhões de euros. Esta subida de 7% em relação a 2017 alimenta em larga medida os bons resultados do cinema em todo o planeta, cujo crescimento, segundo a empresa de análise de box office Comscore, será de 2,7%.

Sem surpresas, são os blockbusters o combustível desta subida, de Vingadores: Guerra do Infinito a Deadpool 2, que também ficaram entre os dez mais vistos em Portugal. Mas para ela contribuiu também o gás de Assim nasce uma estrela, um filme de médio orçamento com mega-estrelas. O topo da lista americana, porém, pertence a um blockbuster de super-heróis Marvel com agenda black power e expectativas em relação aos Óscares: Black Panther foi o filme mais visto e mais rentável nos EUA (612 milhões de euros de receitas brutas).

Uma novidade a assinalar é, como diz a revista Variety, que os jovens ainda vão ao cinema: a percentagem de americanos com idades entre os 18 e os 44 anos que compraram bilhetes foi de 64,4%. Num ano em que o factor Netflix é elemento incontornável em qualquer análise do mercado, consumado que está o namoro da plataforma de streaming com as salas de cinema (um trampolim obrigatório para os Óscares), o cenário de que todos, nomeadamente os mais jovens, fiquem cada vez mais em casa parece para já afastado.

Por cá, a pantera da Marvel não fincou as garras no top 10, mas o Netflix deixou a sua marca no box office. De que tamanho? Não sabemos. Para que Roma — o muito elogiado filme de Alfonso Cuarón ineditamente estreado primeiro em sala e só depois naquela plataforma — chegasse aos cinemas em Portugal, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) aceitou, “a título excepcional e por tempo limitado", não divulgar os seus dados de box office. O resto do mundo seguiu as mesmas regras ditadas pelo Netflix.

“Não há dúvidas acerca de quem se pode gabar no mundo do cinema em 2018. É Reed Hastings, co-fundador e presidente da plataforma de streaming que tudo conquista, o Netflix. Netflix, Netflix, Netflix: a palavra dominou as conversas do cinema este ano como um ataque de espirros”, resumia em Dezembro o crítico do Guardian Peter Bradshaw. Impôs-se como tema nos festivais de Cannes e Veneza (o primeiro não o deixou entrar, o segundo deu-lhe o Leão de Ouro, por Roma), foi exímio na estratégia de marketing do seu negócio mais convencional, alinhou Martin Scorsese, Robert DeNiro e Al Pacino para 2019. E conseguiu com Scott Stuber, ex-vice-presidente dos Universal Studios e actual responsável do serviço para a área do cinema, pôr alguns dos 55 filmes que quer produzir por ano no circuito convencional, estreando-os em sala.

“Podem dizer ‘é Netflix, não é cinema, é streaming’. Até certo ponto é verdade, claro, e para mim, vindo da era dos cinemas, é estranho e incerto”, reconhecia Scorsese ao New York Times. “Mas estamos todos a fazer experiências de grande ecrã e eles [Netflix] dão-nos janelas de estreia nas salas”, frisa o cineasta, sublinhando que a plataforma faz filmes com “respeito e amor pelo cinema”. Um relatório da National Association of Theater Owners, que representa os exibidores americanos, mostrou recentemente que as pessoas que vêem filmes em streaming em casa tendem também a frequentar assiduamente os cinemas.

Menos espectadores em Portugal

Em Portugal, Roma, a aposta do Netflix para os Óscares de Fevereiro (que já tem a forte possibilidade de se ver nomeada para o prémio de Melhor Filme Estrangeiro), só se estreou com pequenos distribuidores independentes. Os grandes exibidores, à semelhança do que sucedeu nos EUA, em Espanha ou mesmo no México natal do filme e do realizador, mantiveram-se firmes na sua oposição a um título que lhes dava uma curta janela de exibição exclusiva.

Com os números finais do ano ainda por revelar (e com Roma, que se estreou no dia 13 em meia dúzia de salas, fora do balanço), as contas feitas pelo PÚBLICO mostram que em Portugal, como se previa, 2018 foi um ano de perda em relação a 2017 – que, com os seus 15,6 milhões de espectadores, se fixou como o melhor ano para a frequência cinematográfica desde 2011. Segundo a soma possível com base nos dados do ICA disponíveis à data de publicação desta notícia (até 26 de Dezembro), o número de espectadores nos cinemas portugueses deverá ter rondado os 14,2 milhões em 2018.

Consequentemente, as receitas também sofreram uma quebra: aos 70,2 milhões de euros de receitas brutas contabilizados até ao final de Novembro juntaram-se até ao dia após o Natal cerca de seis milhões, o que colocará a fasquia final do ano na casa dos 76 milhões de euros. O ano de 2017 terminou com 81,6 milhões de euros de receitas.

É uma quebra prevista de perto de um milhão de espectadores, mas é necessário ressalvar que os últimos dias do ano são tradicionalmente uma época de boa afluência aos cinemas. Filmes como Aquaman (mais de um milhão de euros em duas semanas), Grinch, Ralph vs Internet ou O Regresso de Mary Poppins continuaram a encher salas até ao fim de 2018, pelo que as contas ainda irão subir, mantendo afastado o espectro da crise de anos anteriores: o box office português soçobrou, mas não caiu para mínimos históricos como o do pior ano do século, 2014, em que apenas 12 milhões foram ao cinema. Em 2015 as salas receberam 14,6 milhões de pessoas e em 2016 a subida continuou para os 14,9 milhões.

A descida nas idas ao cinema (sobretudo nos primeiros sete meses de 2018, todos eles abaixo dos níveis do ano anterior) subtraiu cerca de cinco milhões de euros às contas das distribuidoras e exibidoras em Portugal. Já Setembro, Outubro e Novembro foram anos melhores do que os homólogos de 2018. Foram os meses de Bohemian Rhapsody, o segundo filme mais visto do ano (cerca de 450 mil espectadores), ou Monstros Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, da estirpe Harry Potter, mas nada bateu The Incredibles 2: Os Super-Heróis, com 605 mil espectadores e 3,1 milhões de euros em venda de ingressos.

Na lista dos mais vistos, seguem-se mais animação, com Hotel Transylvania 3: Umas Férias Monstruosas (terceiro mais visto), uma mistura de sequelas de super-heróis e música em que figuram Vingadores: Guerra do Infinito (408 mil espectadores, 2,3 milhões de euros), Deadpool 2 (386 mil espectadores, 2,1 milhões de euros) mas também o segundo Mamma Mia!, mais um Johnny English e a possível manutenção de Assim nasce uma estrela no top 10 quando findas as contas do ano – até 26 de Dezembro, o favorito para algumas nomeações para os Óscares já tinha mais de 350 mil espectadores.

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Bohemian Rhapsody DR

O cinema português teve como campeão de 2018 Pedro e Inês, de António Ferreira, com cerca de 45 mil espectadores, seguido por Bad Investigate, de Luís Ismael, com também perto de 45 mil bilhetes vendidos António-Pedro Vasconcelos e o seu Parque Mayer são candidatos a um potencial terceiro lugar no pódio, com 33 mil espectadores acumulados até ao Natal.

França a cair, China a crescer

Tal como em Portugal, o filme mais visto de 2018 em França foi a animação sequela de The Incredibles 2: Os Super-Heróis. No país em que mais pessoas vão ao cinema em toda a Europa (e que é também o maior produtor e exportador do continente, segundo o Observatório Europeu do Audiovisual), houve 200,5 milhões de espectadores nas salas, segundo dados do Centre National du Cinéma et de l’Image Animée: uma quebra de 4,25% em relação a 2017. Em ano de Campeonato Mundial de Futebol, a descida, analisa o Le Monde, ter-se-á ficado a dever à falta de grandes filmes americanos, mas também ao futebol e ao calor intenso do Verão, e a quebra registada até pode incluir na equação as greves ou os protestos dos “coletes amarelos”.

No resto da Europa, Itália e Espanha também caíram, com menos 6% (79 milhões de espectadores) e menos 4% de pessoas em sala (92 milhões de espectadores), respectivamente. Já no Reino Unido, onde a indústria do cinema e televisão está expectante quanto às consequências do "Brexit", o mercado também não cresceu em 2018 e manteve-se com 176 milhões de bilhetes vendidos.

Para ajudar a explicar este ano de recordes é preciso, portanto, estender o olhar até à Ásia. A China, apesar de não estar a crescer tanto quanto em 2017, prossegue o seu caminho de aumento do número de espectadores e das receitas de bilheteira. No segundo maior mercado mundial de cinema (os EUA continuam a ser o mais importante, embora a China já tenha mais salas), os filmes arrecadaram 7,7 mil milhões de euros em 2018, um acréscimo de 9% face ao ano anterior.

A subida só não parece tão acentuada quando comparada com a ascensão de 2016, em que o crescimento foi de 13,5%. Os filmes chineses não eclipsam os norte-americanos, mas estão em maioria, representando 62% das receitas, como noticiou a agência de notícias estatal Xinhua, citada pela Variety. Vingadores: Guerra do Infinito, o segundo filme mais rentável de 2018 nos EUA, volta a ser o filme made in Hollywood mais visto no mercado internacional, desta feita na China.

O ano que agora começa dependerá das fórmulas habituais no que estritamente aos números diz respeito. E 2019 será o ano de mais sequelas e franchises, com o regresso de Tom Cruise em Top Gun: Maverick, o encerrar da actual trilogia Star Wars (Episode IX) e um Dumbo de Tim Burton a poderem voar.

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