Quando o Brasil de Portinari chegou a Portugal
Café, de Cândido Portinari, é a porta de entrada da plástica neo-realista em Portugal. E isto faz-se no contexto da grande manifestação celebratória do Estado Novo.
Em 1940, o Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português apresentava pela primeira vez em Portugal uma pintura do brasileiro Cândido Portinari, Café. Era este também o primeiro contacto presencial que artistas, intelectuais e escritores portugueses podiam ter com uma obra que se aproximava sem equívocos das ideias neo-realistas, como a representação da realidade do trabalho operário ou agrícola, e a opção pela figuração, que se acreditava poder proporcionar uma leitura mais imediata da mensagem da obra de arte do que a abstracção. Café, que hoje está no Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro, regressa agora a Portugal para, no Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira, integrar uma boa exposição onde é contextualizado na realidade cultural da época no nosso país.
A exposição ocupa toda a sala do primeiro piso do museu. Está bem escudada em documentação diversa que atesta da fama e da repercussão que a apresentação da obra de Portinari teve em Portugal. Paradoxalmente, sendo a Exposição do Mundo Português a materialização de uma ideologia sobre a história que o Estado Novo adoptara como sua, a presença de um artista que vai tocar indubitavelmente os representantes de um movimento conotado com o Partido Comunista Português é vista hoje como um autêntico “Cavalo de Tróia”, expressão que as duas curadoras da exposição, Luísa Duarte Santos e Raquel Henriques da Silva, adoptam no catálogo da exposição.
O neo-realismo é um movimento que, em Portugal, é primeiro literário e só depois plástico. O seu ponto de partida é definido pela publicação de Gaibéus, de Alves Redol, em 1939. Coincide com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial e reúne, entre escritores e artistas plásticos, nomes tão importantes como Mário Dionísio, Ferreira de Castro, Júlio Pomar, Lima de Freitas, Vespeira e José Cardoso Pires, entre outros. O acervo da exposição que aqui vemos conta como é evidente com as colaborações da Casa da Achada — Centro Mário Dionísio e do Museu Ferreira de Castro (Portinari executou um conjunto notável de ilustrações para A Selva, deste último autor), além de contribuições diversas de um conjunto de instituições museológicas nacionais: a Gulbenkian, os museus do Chiado e Soares dos Reis e a Fundação Millenium BCP.
É que, de facto, depois da Exposição do Mundo Português e do destaque que é dado ao Café em diversos jornais e revistas portugueses, Portinari adquire pouco a pouco um prestígio enorme nos meios culturais mais eruditos nacionais. Luísa Duarte Santos, que realizou uma tese de doutoramento sobre este tema, assina um artigo no catálogo da exposição onde discrimina ao mais pequeno pormenor a cronologia destes contactos, desde os primeiros ecos da obra de Portinari, ainda antes da sua apresentação em Portugal, até aos extensos dossiers que a revista Vértice lhe dedica por ocasião da morte do pintor em 1962.
Nesta análise, tem lugar de destaque o encontro com Mário Dionísio e outros neo-realistas em 1946, quando passa por Portugal numa volta pela Europa e se deixa ficar durante seis dias por cá com a família. O prestígio de que goza em Portugal sai reforçado nesta visita. Mais tarde, em 1951, o empresário brasileiro Assis Chateaubriand oferece aos museus nacionais portugueses, Chiado e Soares dos Reis, duas pinturas intituladas Chorinho e Cavalo-Marinho, que tinham sido encomendadas ao pintor com outras peças para decorar a Rádio Tupi no Rio de Janeiro.
Estas peças, que também estão presentes na exposição, representam cenas relativas às expressões musicais populares no Brasil, e concordam, no estilo e na temática, com Café, exposto quase ao lado. Outras obras, nomeadamente o Espantalho, de 1940, parecem querer captar linguagens diferentes, como a da paisagem daliniana, para o contexto das narrativas plásticas neo-realistas. Esta capacidade de experimentação, aliada à abertura de Portinari à arte do seu tempo e a tentativa que sem dúvida persegue de tentar captar a essência de uma certa “brasilidade”, que não passa pelo bilhete postal para estrangeiro ver, são sem dúvida os sinais de uma obra verdadeiramente excepcional nesta época.
Café estivera exposto em 1935 em Pittsburgh, nos Estados Unidos, numa exposição internacional no Carnegie Institute, onde ganhara uma segunda menção honrosa. Estivera também na Exposição Mundial de Nova Iorque e o MoMA comprara uma pintura deste autor, em 1939. Houve recensões na imprensa norte-americana, onde se chegou a aclamar o artista brasileiro como o mais importante nas Américas. Comparações não faltaram com os muralistas mexicanos, dos quais Portinari se aproxima pelo estilo e pela vocação de monumentalidade — há referências nítidas em Café a um hipotético referente escultórico classicizante, que aliás encontramos nestes anos 30 noutros artistas que nada têm a ver voluntariamente com a temática neo-realista, como Picasso ou até Almada Negreiros. Saber hoje que a obra dos mexicanos está mais próxima de um contexto revolucionário do qual Portinari se afasta não diminui em nada a familiaridade estilística evidente.
Olhando para esta exposição, e para o universo que ela nos revela desses longínquos anos de apogeu de Estado Novo e de contestação clandestina que se fazia também pela arte, sobressai uma evidência importante: a de que em Portugal havia quem, já nesta altura, percebesse que os caminhos da arte moderna passavam obrigatoriamente pelos contactos internacionais. Portinari é um dos primeiros a suprir esta ânsia de educação e contexto, porque é disso mesmo que se trata, que notamos tanto em Mário Dionísio como noutros que sobre ele escrevem e que, diz-se, iam quase quotidianamente visitar Café no Pavilhão do Brasil. Os anos seguintes, as décadas sucessivas mais não vieram que confirmar, em todos os artistas que fizeram a arte portuguesa do século XX, que este era, sem hesitação, o caminho a tomar.