Presidente do Banco BIG: "Incesto entre banca e Estado foi sempre maior do que o desejável”

Carlos Rodrigues sublinha que as crises não se prevêem. Sobre uma eventual bolha da dívida, alerta que é mais provável que rebente por imprudência da gestão do que pela subida dos juros.

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RUI GAUDÊNCIO

O presidente do Banco de Investimento Global (BIG) faz o seu diagnóstico sobre o estado da construção europeia, com um foco no momento da economia e da banca. E destaca: “a incestuosidade entre banca e Estado foi sempre maior do que o desejável”.

Disse há pouco tempo que se vive "uma certa calmaria" que o deixa receoso. Porquê?
Estamos numa zona económica que, sendo uma das duas maiores do mundo, não faz medidas de aprofundamento dessa união que está imperfeita. E os únicos passos dados foram em resposta a uma crise [2008] que começou nos EUA, onde foi bem resolvida, e em dois anos os bancos já apresentavam lucros. Já na Europa não foi bem resolvida, as crises são latentes e resolveram-se sempre em reuniões às 04h00 da manhã, com todos os presentes cansados. Basicamente a única coisa que a Europa fez para avançar, foi a tentativa de União Bancária que deixou de fora um pilar: o Fundo de Garantia de Depósitos europeu. 

Ainda assim a UE criou o mecanismo europeu de estabilidade (MEE ou ESM, na sigla inglesa).
Sim, mas é pouco. [O tratado de] Maastricht celebrou-se em 1992, estamos a falar de mais de um quarto de século. Na prática, o Tratado de Lisboa [2007] acabou por não aprofundar o projecto europeu como pretendia. Aprovou a meta de, em dez anos, a União Europeia (UE) ficar, em termos tecnológicos, à frente dos EUA, o que não se concretizou. E se uma União se quer monetária, deve ser aprofundada, pois, caso contrário, se deixar passar o tempo, acaba por poder morrer.

E o que diz ao facto de a Alemanha ter vindo avisar que o Fundo de Garantia de Depósitos só será concretizado muito mais para à frente?
Então, se assim for, a UE não resistirá muito tempo. Acredito, no entanto, que se fará mais cedo, pois uma união que se quer com a mesma moeda, terá de ser aprofundada dentro de um espaço de tempo razoável, com as vontades a convergirem para um espaço com regras comuns. E com legitimidade do voto. E aí a experiência não é boa: fizeram-se referendos e quando estes começaram a correr mal para a UE, a UE recuou porque não foi capaz de explicar as vantagens do projecto. E o que se vê é que cada país tem uma agenda própria. E hoje é muito imperfeita, muito desigual em termos de desenvolvimento económico dos vários países. 

E como avalia o papel da Alemanha depois da crise da dívida pública?
A Alemanha tem uma moeda fraca, que é o euro, e acumula superavits, enquanto para outros países da União, o euro é uma moeda forte. As obrigações soberanas alemãs pagam, a 10 anos, um quarto de um por cento fixo, o que significa que se podem desenvolver sem quase gastarem dinheiro. O custo para Portugal é de 1,7% e para os italianos até há poucos dias era superior a 3%. Existe, portanto, na União, uma assimetria que se auto perpetua e condiciona o desenvolvimento de alguns países e da União como um todo.

A história da UE não é viver permanentemente atrás do prejuízo?
Se a História se repetisse, viveríamos sempre em guerra. Agora vivemos num hiato. E como as primeiras crises surgiram na banca, o sistema circulatório das economias, fez-se o ESM, o SSM e o Fundo de Resolução Europeu. É que se a zona euro implodisse, a UE também implodia. Por isso digo que estando garantida a prosperidade e a paz, a União deveria aprofundar-se ou o seu futuro fica comprometido. 

O seu pessimismo resulta de quê?
Não é pessimismo. É a constatação de uma realidade.

Diz que não é possível construir a Europa contra a vontade dos povos, sem consultas directas, sem o seu envolvimento.
E a médio prazo é verdade. É claro que há sempre os representantes eleitos nos vários Estados com poder de os comprometer. Mas se queremos aprofundar esta União, temos de consultar as populações, temos de as ouvir. Hoje, como agente económico, vejo prosperidades diferentes e problemas difíceis em zonas económicas distintas. Existem três grandes blocos económicos: a China, os EUA e a UE. E foi até nos anglo-saxónicos, onde nasceu a crise de 2007/2008, que o problema foi atacado de forma mais eficaz, em dois ou três anos estava resolvido. Não foi preciso aos governos fazerem de Pôncio Pilatos: o Tesouro americano [equivalente a Ministério das Finanças] e o Banco Central intervieram, fomentaram a consolidação e, no fim, o sistema foi redesenhado com ganhos para os contribuintes.

Passados dez anos da queda do Lehman Brothers, que pôs em evidência a crise de 2008, nos EUA já se esqueceram?
Nos EUA não se fala de crise. O que me leva a concluir que a UE não fez o seu trabalho, o que não beneficia o conjunto dos povos europeus. O movimento de integração europeia parou e há menos relevância em termos mundiais.

Como comenta o facto de analistas, economistas e gestores estarem a dar como provável uma nova crise de dimensão semelhante à de 2008, nos sectores imobiliário e de dívida...
Em geral as crises não se prevêem. E a experiência diz-nos que quando todos a antecipam é porque não acontecem. Mas crises vão sempre acontecer. A pergunta que deve ser feita é outra: com que resiliência as vamos enfrentar e como as vamos gerir? Hoje, na banca, os níveis de capital são importantes tal como os rácios de solvabilidade, mas a defesa fundamental [face a uma crise] é a qualidade dos activos em balanço. E as respostas às crises devem ser dadas em termos globais, o que exige maior integração europeia. A UE está muito mal preparada para enfrentar uma grande crise.

Até Olli Rehn, o ex-comissário europeu para os Assuntos Económicos e Monetários [2010-2014], actual governador do Banco Central da Finlândia, chamou a atenção para a vulnerabilização das economias pelo aumento da dívida.
Há preocupação com os agregados de dívida que sendo sustentáveis em momentos de expansão económica, podem não resistir a ciclos de baixa. Nos EUA havia preocupação com as taxas de juro historicamente baixas [nulas], e que agora a cinco anos já estão a mais de 2,5% e a dez anos perto dos 3%. 

Não acredita muito num estouro da bolha?
Não diria que esteja controlada. Mas a bolha é mais fácil de acontecer por má gestão ou pela gestão imprudente de países e de empresas, do que por eventos excepcionais que mudem as taxas de 2 ou 3% para 5%. Acredito que os efeitos de uma explosão [da dívida] aconteçam mais pela imprudência da gestão de quem necessita de se endividar [do que pela subida dos juros]. Quando tudo corre bem a tendência é para relaxar e para assumir compromissos estruturais. E reconheço que os avisos dos supervisores são importantes pelos efeitos prudenciais

Há sinais de que a banca, nomeadamente a portuguesa, tem tratado de furar esses avisos.
Não sei. Houve uma descida muito grande dos rácios de alavancagem [rácio empréstimos sobre depósitos] que, nalgumas instituições, chegavam a quase 200% e que agora estão em menos de 100%. Verificou-se realmente uma desalavancagem na banca e empresas do sector real registam agora equilíbrios.

Há a ideia de que os reguladores tomam medidas mais para responder às crises do passado [exigências sucessivas de aumentos dos rácios de capital], do que para antecipar as que estão para vir.
Há um elemento de verdade, mas também melhorou a supervisão, a qualidade dos activos, a legislação. E a questão é menos verdadeira nas unidades económicas dos países onde ninguém já fala da crise de 2008, como os EUA. E até países do centro da Europa, os tais que têm superávites brutais, que enriqueceram muito com a crise por terem uma moeda fraca. E ainda assim a Alemanha não ajuda a expandir a zona euro. 

O caso alemão choca-o?
O que digo é que se os alemães quisessem construir “auto-estradas no céu”, faziam-no financiados a taxa fixa a 30 anos abaixo de um por cento. Ora, ir pedir dinheiro e ficar a pagar menos de um por cento por um crédito a 30 anos é quase a garantia de que os investimentos são rentáveis. É muito diferente ter de pagar 3% ou 4% ao ano a 30 anos, como acontece em Portugal. Dito isto, não podemos viver com um nível de endividamento alto. 

Antes quando a dívida pública ultrapassava os 30% do PIB era uma anormalidade. Agora se fica em 40% é muito aceitável. Olhando para o cenário do que é o sistema financeiro internacional e se compararmos, em termos de evolução histórica, os rácios de dívida das empresas e dos Estados, não haverá necessidade de reforçar a prudência?
Também é verdade que os níveis de inflação e das taxas de juro baixaram muito, enquanto o nível de concorrência aumentou imenso. E a legislação europeia está a criar uma distorção concorrencial. No caso da Grécia, foi a desigualdade dos credores. Os credores oficiais receberam 100 por cento da dívida [dos empréstimos que fizeram à Grécia] e os privados levaram um haircut [receberam menos 60% do que emprestaram], que se revelou ter sido um enorme erro. Esta decisão, a par de outras, contribui enormemente para que ainda hoje na UE se sintam os efeitos colaterais da crise de 2008.

O que foi feito com a Grécia levou a uma grande desigualdade...
... a uma enorme desigualdade no crescimento da UE e das instituições que ali operam. As medidas deixaram marcas nas economias, principalmente nas periféricas do sul. É verdade que a dívida hoje é maior, tal como é verdade que o custo da dívida e os níveis de inflação são menores. Mas também é preciso ver que, mesmo assim, a prosperidade mantém-se.

A resposta das autoridades à crise de 2008 gerou stress regulatório aos bancos?
Sem dúvida. E stress de custos. Temo que à falta de unidade europeia se tenha, a União tenha adoptado um excesso de regulação, sobretudo por extensão dos regulamentos muito densos, sem que haja regulação simples e directa. Passa-se o tempo a redigir regulação, alguma é necessária, mas outra não é, do que a fazer o devido controlo de qualidade.

Foi-se longe de mais?
Não no sentido das exigências de capital e de procedimentos, mas do ritmo em catadupa em que se produz legislação. Nesta crise financeira, na UE, muitas instituições e responsáveis ficaram sem condenações. E os que menos sofreram foram as agências de rating, assim como as empresas de auditoria e os órgãos de fiscalização internos das instituições que eram supostos controlar e garantir a boa gestão. E obviamente os reguladores e os supervisores também não estão imunes. E não são as milhares de páginas de regulação que vão resolver o assunto, até porque elas são difíceis de seguir. E no final o negócio desaparece se se ficar sem tempo para o desenvolver.

Os supervisores deram conta disso?
Acredito que sim. Acharam que fizeram o melhor e já perceberam que talvez tenham ido longe demais. O risco é quando [reguladores] tentam controlar aquilo que são as funções e os direitos dos investidores, os que colocam o seu capital nas instituições, o que lhes deveria dar o direito de escolher quem manda na gestão do seu dinheiro. Não me parece ser uma boa ideia que os reguladores tentem ocupar as funções dos investidores e dos gestores, isto, sem prejuízo de poderem exercer os deveres de vigilância do que é “fit” do que é “proper” quanto ao carácter, experiência e passado dos membros indicados para os órgãos sociais dos bancos.

O que é que quer dizer?
Onde há mercados concorrenciais, as boas empresas têm tendência para sobreviver, já, e por oposição, nos mercados pouco concorrenciais, com preços formados de forma mais administrativa, ou então, pelas autoridades centrais, surgem problemas. O risco é acabar por estatizar os sectores. E o financeiro é um deles.

Os Estados estatizam os bancos?
Não falo de Estados. O que digo é que a produção regulatória acaba por uniformizar as ofertas porque, em certa medida, protege os tamanhos dos bancos, os de maior dimensão [o objectivo do BCE é que a UE fique com apenas 30 bancos, todos grandes], e assim acabar com a inovação quando ela é mais necessária, e que é produzida, muitas vezes, em instituições de pequena dimensão. Corre-se o risco de se criarem grandes bancos que são too big to fail [demasiado grandes para falir] e um pesadelo para os reguladores e de, ao mesmo tempo, estes gigantes se tornarem too big to function or operate [demasiado grandes para funcionar].

Está moderadamente optimista?
Costumo dizer que se não mudarmos nada num mundo que evolui rapidamente, tendemos a desaparecer. Há sempre gente em todos os blocos a pensar em coisas novas, sejam as fintechs, sejam as novas entidades não reguladas.

As fintechs são uma moda?
Não me parece que sejam e algumas têm soluções interessantes. E daí a necessidade dos bancos terem de inovar e de cooperar com o sector das fintechs

Acha que continua a existir uma cultura tóxica na gestão dos bancos?
Não estou certo que dominasse no sector ou que fosse tóxica. O que eu diria é que a incestuosidade entre a banca e o Estado foi sempre maior do que o desejável. E não estou a falar apenas de Portugal, onde era acentuada, mas havia em todo o lado. E havia incompetência. E isso não era cultural, nem estava institucionalizada.

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