As artes e o Estado de direito

A questão de fundo é mesmo que as artes e as artes que não se conformam ao sistema mediático espectacular vigente e aos modos de circulação do dinheiro.

O debate sobre as artes vulgarizou-se, sindicalizou-se, deslocou-se para o tema sistema de apoios que lhe é exterior na génese, despolitizou-se, foi capturado pelas agendas políticas de shares vários, partidários ou associativos, parlamentarizou-se, visibilizou-se - para não se ver de ser muito visto, ganhar o estatuto dos prime time que o normaliza .. não integrando mas legitimando a sua expressão residual -, escapou enquanto poder de destino nas mãos, aos que, na origem, as legitimam porque lhes dedicam a vida - não há testes psicotécnicos para um “falhado” despesista - um modo de viver, de morrer: que as fazem, marginalmente, tolerados, decorativos, engraçados, finalmente artistas, trabalhadores da forma, das escritas.

Pode viver-se sem poesia? Sem esses todos que a criaram e viveram, sem Homero e Pessoa, Dante e Celan, Camões e Herberto, e Shakespeare e Crimp, e Koltès e Barker e Vinaver...? Pode. Sem o Ballet Gulbenkian? Pode. Sem Fellini? Sem João César Monteiro? Pode. Sem o TNDM? Pode. E consumindo até à exaustão fast thinking imagético, entretenimento de dedo-mental e videoclips? Pode. Empanturrados disso? Sim. Sobrealimentados de fluxos constantes de poluição - mau gosto, escritas ronceiras, slogans gordurosos rosa choque - padronizada na forma e nos modelos dos “filminhos”, dos jogos, dos concursos, das “curtas”, “rapidinhas”, que os ecrãs oferecem em todo o tempo e em todo o espaço - ecrã-altar de bolso, droga doce, religio-ligado - a repeti-lo mimeticamente? Pode. Que vida é essa? A que o mercado e o espectáculo servem a frio - e a quente, cultivando as reacções baixo-instintuais e a agressividade de claque, de casta, de raça, de parte supostamente identitária, do “somos todos iguais”, dos penteados e unhas, etc. Quanto maior for a quantidade, mais básica a vulgaridade, quanto mais espectáculo menos democracia, menos teatro.

Tudo será, ou não, virtude de um sistema e do modo como a democracia possa “regular”- contraditar, contestar, desdizer, (des)simular, desconstruir, pois, não como habilidade intelectual entretida, sim como tremor de terra mental - o poder do mercado, isto é, permitir criar vida na vida que há fora dele - em nichos de vida, ilhas de desejo, comunidades residuais ou para a margem atiradas, mesmo para fora da vida (e o que serão as reservas de todo o tipo, animal e humanas, as cidades nómadas e os “campos” que agora se repetem e alastram?) - numa escala democrática, paralela e contraditória, autêntica, real, dependente da relação dos criadores com a criação e com os cidadãos, fora dos canais da consumo-dependência que na gigantesca praça mundial de alimentação simbólica existem e são omnipresentes — mesmo na solidão anónima extrema, a igreja dos ecrãs unificada pelo princípio do negócio tende a vender o “estamos sempre ligados”, pessoas terminais, objectos-sujeito de interacções, soberanas, de sentido último, economia, fluxos imagéticos do lucro, fala das rendibilidades, do dogma dinheiro, deus único, sem espírito santo nem pai, nem filho, ouro que reluz em si e vive e se espalha de equivalentes, credo, crédito (Agamben).

A questão de fundo, que fundamenta a existência de um espaço autónomo e livre de tutelas, com existência própria, gerado pelo avanço da democacia como sistema cultural independente - aparelhos de criação, produção e circulação, divulgação-, relativo às expressões que se formam linguagens e se expandem por vontade artística - individual ou colectiva -, que se socializam ou se marginalizam porque formas da criação profissional artística- não domadas previamente pelo sistema de um emissor receptor regulado e que confirma expectativas e regula os modos do desejo salivar como o caozinho do outro - de associar disciplinas em modos vários de reconstrução artística do real, de pulsão sensível de dizer o labor sensível como experimentação formal, fora de classificação normativa, é a de que a organização social actual, esta democracia liberal parlamentarizada, não lhe encontra lugar - ela que tudo institucionaliza doentiamente, controleiramente, digitalmente, plataformadamente, financeiramente, rejeita as artes da presença simultânea numa dimensão que seja de escala democrática - enquanto gesto necessariamente desfasado, anacrónico, crítico, dentro e fora do sistema, já que o sistema só admite o que não o põe em causa como todo.

Para respirar é necessário escavar em grutas um silêncio que alimente e sair dos territórios das visibilidades que tudo devoram e conaturalizam, marcam (de marca), tornam “célebre” de modo célere, renda mediática,  “valor acrescentado” - fetiche ou fetichezinho - que destrói o especificamente artístico e o vulgariza.

Apenas na morte e sua celebração - negócio estável, a morbidez celebratória, retirando aos celebrados o seu veneno singular, conferindo-lhes aura, ritualizando um uso controlado - a arte encontra, nesta sociedade, nesta democracia, um lugar. Quando é pura crítica, inconrformada forma de viver, não se adequa à democracia fronteira alcançada, esquema de um mesmismo montado por uma técnica de governação obcecada pelos “inevitáveis equilíbrios estatísticos orçamentais” consensualo-parlamentares.

Se o Estado de Direito Democrático - o real, gerido por esta “esquerda”, é um “Estado” de Direita Democrático - assenta na separação de poderes, na existência de um governo eleito, de tribunais e de parlamento, de pão, educação, saúde - “para todos”… - de partidos que são os sujeitos orgânicos e quase exclusivos da política tal como se vem praticando - isso está a mudar -, de informação - virtualização mediatizada do real, espectacularização do real - livre, de uma lei constitucional que por cima deveria reger estes exercícios diversos de poderes, etc., o que de facto não existe é esse espaço que poderia ser também o território livre das artes na sua verdadeira dimensão - espaço de invenção e crítica, de comentário constante de um real que é máquina de triturar e des-humanizar, de governar, gerindo o que é desigual e injusto para o conservar mais ou menos assim - enquanto poder real de uma parte minoritária da sociedade que se dedica às artes e à sua dimensão cultural, fora do que seja a sua sujeição a quaisquer formas de rendibilidade obrigatórias - as artes têm as suas economias próprias - e fora de tutelas que as controlem enquanto “produtores livres de sentido(s)” sob formas artísticas.

E esta é a questão de fundo para as artes em geral, mais em particular para as artes que se dimensionam pela sua função social, que só vivem nessa relação, que não se podem converter em moeda, investimento, património rendível, são “inutilidade despesista”, tal como tudo o que é humanamente expressão sensível e está inscrito no código genético do humano por diferenciação com o animal - mesmo o de colo. Que fazer das figuras do Coa? Que fazer da Torre de Belém? Uma discoteca, disseram. Que fazer da colecção do Berardo? Que fazer dos Mirós? Porque é que pilas em Serralves dão o tipo de debate que houve? Porque é que a Paula Rego levou parte do exposto na Casa das Histórias? Porque é que a Maria João Pires interrompeu Belgais? Porque é que a Cornucópia acabou - independentemente do Luís Miguel Cintra - já que era um fenómeno de tipo cultural que o transcendia a ele? Porque é que não há centros dramáticos pelo país espalhados e localizados onde devem estar? Porque é que não há mais orquestras e há tanta música por aí e tanta música de fundo e tanta música sobredecibelada ruas fora? Porque vivemos cercados de festivais e festivalices? Porque acabou o Ballet Gulbenkian? Porque é que o Paulo Ribeiro saiu da Companhia Nacional de Dança? Alguém lhe fez alguma pergunta? …..etc,.

A esse espaço livre das artes - que nas diversas formações sociais da história teve as suas existências próprias, sempre “inadequadamente” críticas na medida em que visões próprias -  alguém chamou falando de teatro, que era “um outro da política”. Em boa verdade o edifício teatral era junto do parlamento e da ágora, um centro de formação da livre opinião. E o teatro dizia o que o parlamento não dizia e dizia-o de um modo único, perante uma assembleia cidadã única, uma casa de todos atrevendo-se a questionar tudo e todos, poderes e deuses. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, de quem nos chegaram textos, legaram-nos o que nenhuma outra linguagem nos legou, é um património único - não são apenas os textos, é tudo o que nos textos está, dos edifícios às práticas da linguagem de palco, aos deuses ex-machina, técnicas e poesia de pensamento, linguagem da parábola, pensamento metaforizado, reflexão sobre a origem e condição do humano, o seu futuro através da reflexão acerca da repetição - trágica - do erro. Como disse Heiner Muller nos “mitos gregos já está tudo”.

A questão de fundo é mesmo que as artes e as artes que não se conformam ao sistema mediático espectacular vigente e aos modos de circulação do dinheiro, que não são formas de economia contabilística - mas democracia - até porque são artes de presença(s) e não da sua virtualização exponenciada, não têm lugar nesta democracia.

Seriam como um pulmão fora do sistema que o sistema pelo menos tolerasse na sua dimensão potencial real - sendo democracia real, cultural -, de impacto social relevante, um olhar exterior ao olhar dominante, uma visão fora da cultura para-sistémica hegemónica.

O problema das artes nesta democracia é um problema de democracia, da própria democracia, da aceitação da forma amputada da democracia vigente como a forma própria de ser da democracia, como a sua “normalidade” parlamentarizada. E não se trata aqui de uma percentagem do orçamento, trata-se mesmo da inscrição de uma parte do corpo da democracia que está longe do poder real de intervenção crítica e sensível, cognitiva, pedagógica, emancipadora, que contém em potência, mas que a “outra democracia”, a instituída, exclui. Infelizmente a Constituição é em matéria das artes muito omissa, demasiado vaga, na altura os constituintes estavam longe de poder pensar um país de artes e cultura como futuro, estavam todos com a cabeça nos direitos básicos e percebe-se.

O sistema actual não tem contraditório com poder crítico real, em boa verdade, esse, é parte do consenso, o espectáculo tudo engole e doma e o dogma económico especulativo e mitificado tudo determina.

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