De párias a modelos: como professoras “trans” estão a mudar a escola na América Latina
Leona, Fernanda, Luma, Cláudia e Alanis. São professoras transgénero na América Latina. E é a partir da sala de aulas que procuram quebrar tabus: "Quando a escola se torna um espaço comprometido com a luta das pessoas que foram marginalizadas e feridas, fazemos uma educação reparadora."
São 7h00 quando Leona Freitas, de 30 anos, chega ao trabalho. Loira, com quase 1,80 metros, sai do carro do namorado com uns saltos altíssimos, maquilhagem leve, bem vestida. Despede-se dele com um beijo carinhoso e caminha até à entrada da creche municipal. Os saltos são trocados por ténis, mais confortáveis para o vai-e-vem dentro da instituição e para o corre-corre atrás dos mais pequenos. Mas ao entrar na escola, quase sempre ouve algo como “Cadê o Albert?”. “A minha transição foi lenta. Pensei que me ajudaria o facto de haver muitos homossexuais na educação, mas não. Uma 'trans' foi novidade para eles”, conta. Leona não se importa. O que lhe dá alegria é estar perto das crianças, brincar com elas, dar-lhes comida à boca. “O meu namorado quer ter um filho. Preocupo-me com isso, pois não posso, claro.”
A vida corre em slow motion. Moradora em Congonhas, no Brasil, uma pequena cidade de 50 mil habitantes no interior de Minas Gerais conhecida pelas suas festividades religiosas, Leona anda quase sempre ao lado do namorado ou da mãe. Católica, assim como a família, mas “menos praticante” do que a mãe, procura frequentar a igreja “pelo menos nas datas importantes”. “Os olhares são inquisidores mesmo. Depois que assumi a minha transexualidade, nunca mais pude comungar. Fico lá no fundo.”
Fábio, companheiro de Leona, faz questão de a ir buscar todos os dias à creche. Dali, seguem para outra escola, na zona rural de uma cidade vizinha. Lá, a professora é adorada pelos alunos, mas tem de conviver com a resistência dos colegas, da direcção e dos pais em relação ao seu nome social. Não a tratam por Leona, mas reconhecem-na como mulher. “Eu tenho o privilégio de ter a Albert como minha secretária. Para ser um secretário, é necessário ética e isso é o que a Albert tem”, diz a directora Rosarita da Silva Rodrigues.
Leona reconhece que a obstinação em tratá-la pelo nome de nascimento vem do desconhecimento do que significa identidade de género e do “conservadorismo da sociedade congonhense”. “Para eles, eu era um homossexual que se vestia de mulher. Não sabiam sequer me nomear — se eu era travesti, gay”, diz, com certo pesar. “Mas eu não me queixo. Herdei da minha mãe essa capacidade de superar as adversidades. Acho que já avancei muito, pois eles já se referem a mim como mulher. O meu nome social é que não dizem. Tudo bem. A minha presença aqui já é uma quebra de tabus. Sou a única 'trans' do município. Já me conforta tornar o caminho de outras mulheres transgénero na educação mais tranquilo.”
Leona conquistou esse posto de trabalho graças a um concurso público. A prova assegurou-lhe a oportunidade de fazer carreira no ensino público e, no Brasil, raras são as mulheres que trabalham como professoras no ensino privado. “Ainda somos muito poucas nesse espaço”, confirma a educadora "trans", doutorada e escritora Amara Moira. “Para que possa ensinar, ser professora, as instituições vão ter que te blindar de alguma forma naquele espaço. E elas não querem comprar essa briga.”
Fernanda Ribeiro, 38 anos, também trabalha na rede pública, cargo que conseguiu através de concurso público. Professora de um colégio tradicional e centenário de Ribeirão Preto, quase não sai de casa. Ribeirão é um pólo da indústria do álcool de cana-do-açúcar do estado de São Paulo, onde a economia pujante e progressista contrasta com o conservadorismo da sociedade – 72,2% dos eleitores que foram às urnas no dia 28 de Outubro votaram em Jair Bolsonaro. “Ninguém sabe quem eu sou fora da escola", diz Fernanda. "Sou vista como uma prostituta, uma marginal. Quando entro para comprar algo num lugar, tenho medo de ser atingida na cabeça por uma lâmpada ou por um pedaço de pau.”
A educadora lembra os seus primeiros dias na escola: “Anunciei de cara que sou travesti. Quando cheguei com o discurso 'sou travesti e professora' foi uma desconstrução muito grande. Foi uma oportunidade para mostrar que nós podemos ocupar qualquer espaço, principalmente o educacional, que é o mais opressor e segregador com travestis e transgénero.” Na América Latina, o termo travesti refere-se a pessoas que se se identificam com um género diferente daquele que foi atribuído no nascimento e que fazem alterações nos seus corpos, mas não a cirurgia de reatribuição do sexo.
Apoio silencioso
Fernanda era ainda uma criança quando o pai, um policial militar, percebeu que ela não era como os demais meninos. “O meu pai foi um visionário por perceber que eu era diferente e por insistir que se haveria algo que me poderia garantir um futuro eram os estudos. Ele nunca me deixou faltar nas aulas.”
Contar com o apoio dos pais foi essencial para sobreviver ao ambiente escolar e, mais tarde, conquistar um diploma universitário. São poucas as pessoas "trans" na América Latina que chegam à universidade. Geralmente vítimas de violência familiar ou expulsas pelos pais, acabam por não conseguir prosseguir os estudos. A maioria desiste mesmo no ensino secundário, pois a escola é sinónimo de crueldade, exclusão, insegurança, omissão. Quase sete em cada dez estudantes dizem já ter sido atacados verbalmente por causa da sua identidade de género e quase oito em dez sentem-se excluídos por se identificarem como "trans", apontam várias investigações de 2016 sobre o ambiente escolar realizadas na Colômbia, Brasil e Argentina. “Como consegue permanecer num lugar em que você não é reconhecida, não é aceite com as suas diferenças? Não tem como sobreviver nesses espaços”, diz Luma Andrade, "trans" e professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
A peruana Cláudia Vásquez Haro tinha quase 30 anos quando ingressou no curso de Comunicação Social da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), a cerca de uma hora de Buenos Aires. Anos antes, já se tinha assumido como travesti e estava prestes a tornar-se na primeira transgénero a frequentar aquela instituição.
Hoje, aos 40 anos, é investigadora e professora. Lembra-se perfeitamente do dia em que se foi matricular. “Estávamos em 2005, sete anos antes de a Argentina aprovar a Lei de Identidade de Género. Os meus documentos ainda tinham o meu nome de nascimento”, conta. “Pedi à minha mãe e à minha irmã que me esperassem na porta. Se eu voltasse em 15 minutos era porque não havia conseguido suportar os olhares. A minha mãe cansou-se de esperar”, ri. Entrou na sala de aula e, resoluta, declarou: “Professor, se o senhor não se incomoda, gostaria que me chamasse Cláudia. Se ficar incomodado, então me chame pelo meu sobrenome.”
O início não foi fácil, teve de repetir esse bordão inúmeras vezes. Até que um dia se fartou: “Eu pensei: ‘Chega!’ Levantei-me e disse: ‘O meu nome é Cláudia e eu não me reduzo à minha genitália'. A turma ficou muda, de olhos arregalados, mas uns minutos depois começou a aplaudir. Eu já estudava lá há uns dois, quase três anos, mas foi a partir daquele momento que as coisas começaram a mudar.”
Primeiro, conta ela, uma de suas professoras anunciou: “A partir de agora, neste curso você é Cláudia.” Foi à lista de alunos, riscou o nome de nascimento dela e reescreveu-o com o seu nome social. Poucos dias depois, numa reunião de professores, a docente comunicou aos colegas que havia uma mulher "trans" no curso e que ela deveria ser respeitada. “Em 2008, a instituição tornou-se a primeira faculdade pública da América Latina e do Caribe a reconhecer a identidade auto-percebida dos seus alunos 'trans'”, diz, orgulhosa. Anos depois, a UNLP criou a Direcção de Diversidade Sexual e entregou-lhe a chefia.
O fervor com que Cláudia defende que outras mulheres "trans" ocupem a universidade — como alunas, docentes, investigadoras — remete para a sua própria jornada. E sublinha que a sua família — “mãe, irmãos, tios, primos” — foi fulcral nessas conquistas. "Sem o apoio deles, eu não estaria aqui. Sabe-se lá quantas Cláudias ficaram no caminho, quantas não conseguiram concluir os estudos, nem chegar à universidade."
Pedagogia do amor e do cuidado
“Eu sou peruana e emigrei para a Argentina. Pensava que a única saída que me restava era a prostituição”, diz Ariana Linares, estudante "trans" da UNLP. “Quando conheci a Cláudia e vi que ela tinha conquistado seus sonhos, pensei: ‘Se ela pode, porque não eu? Porque todas nós não podemos?' Foi quando decidi batalhar para entrar na faculdade.”
Numa sociedade marcada pelo machismo e pela religiosidade extrema, ser mulher "trans" é ser vista como pária. “Você é triplamente penalizada: pela sua família, que te chuta para fora de casa; pela escola, que não entende os nossos trânsitos corporais nem as nossas vidas e que não se quer abrir para a diferença; pelo mercado de trabalho, que não te aceita”, diz Alanis Bello, 32 anos, professora transgénero da Universidade Nacional Pedagógica, em Bogotá (Colômbia). “Ninguém espera que uma 'trans' vá dar aulas. Parece que há uma incompatibilidade entre esses dois imaginários. Quando se entra na sala de aula, todos os estereótipos são atirados para cima da pessoa: ‘Não, não pode ser professora porque é puta, vai transformar as crianças em homossexuais, não se meta com meu filho’.”
Alanis chegou à universidade em guerra porque não queria mudar seus documentos. Para a instituição, ela era somente Jason. “Todo o mundo esperava encontrar um senhor. Como eu gosto de incitar a curiosidade dos meus alunos, cheguei com uns saltos altíssimos, maquiada, super drag”, conta, rindo.
Ao evocar os primeiros anos como docente e investigadora, relata que a comunidade académica a via com desprezo. “Achavam que eu estava ali simplesmente porque era 'trans', mas que eu não tinha um discurso, não tinha uma forma de ensinar”, relata. “E falavam e falavam de Paulo Freire [célebre pedagogo brasileiro]. Um dia, disse: ‘Vou transformar Paulo Freire em travesti'. Eu queria questionar esses cânones de pensamento.”
Pouco a pouco, construiu uma rede de alianças com alunos, docentes e diversos sectores da universidade. “Estamos a criar um novo projecto pedagógico, uma pedagogia travesti”, expõe. Alanis não acredita na escola inclusiva. “A inclusão cria guetos de diferentes. Mas quando a escola se torna um espaço comprometido com a luta das pessoas que foram marginalizadas e feridas, fazemos uma educação reparadora. Nós, professoras, somos trabalhadoras do cuidado, como as putas.”
Os alunos de Alanis sentem no dia-a-dia esse acolhimento. “Desde pequenos que somos ensinados por professoras, mais do que tudo. Elas ensinam-nos quais devem ser os comportamentos que correspondem a nosso género”, diz Laura Moralez, uma das estudantes. “Quando você chega ao ambiente académico e encontra alguém com um corpo chamativo, mas com uma humanidade, uma intelectualidade incríveis, você enamora-se. Foi como colocar o meu mundo de cabeça para baixo: de que não há um caminho, mas mil caminhos para tomar, pensar e sentir.”
* Esta reportagem foi financiada pelo Centro Europeu de Jornalismo