A (r)existência delas pode ser a revolução de um país
Precisamos de a ver, precisamos de a ouvir: a artista e activista trans Linn da Quebrada volta a Portugal para dois concertos, dia 5 de Outubro no Porto, dia 6 no Barreiro. Passa também pelo ecrã do Queer Porto, no filme Bixa Travesty. E ainda há uma conversa na ZDB. É ela, aqui e agora, na linha da frente de um movimento feminista, negro e queer que ganha cada vez mais visibilidade dentro da nova música brasileira. Corpos em luta, na resistência e no afecto, num país mergulhado no caos político.
Olhar terno, sorriso transbordante. Palavras implacáveis que saem com urgência e insurgência de um corpo que é, só por si, um manifesto político. Quando Linn da Quebrada pega no microfone, há um outro mundo que se levanta. Abrem-se novas formas de ser e existir, que rompem com paradigmas de género e espartilhos sociais. Que dão dignidade a sexualidades e relações estigmatizadas, a corpos e a vozes historicamente silenciados e policiados.
“Eu faço das minhas músicas o que eu preciso ouvir. O que eu preciso dizer. Não só sobre a minha identidade de género, mas em relação ao meu corpo, aos meus afectos, aos meus desejos”, diz ao Ípsilon a cantora, compositora e activista transgénero brasileira de 28 anos, semanas antes de voltar a Portugal para dois concertos integrados na sua quinta digressão internacional: 5 de Outubro no Maus Hábitos, no Porto, dia 6 no festival Out.Fest, no Barreiro. Mas há mais. Bixa Travesty, premiado documentário sobre Linn realizado por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, é o filme de abertura da quarta edição do festival Queer Porto (dia 10, Rivoli). Na ZDB, em Lisboa, a cantora e performer participará numa roda de conversa, dia 9 pelas 19h.
“Bicha, trans, preta e periférica, filha de empregada doméstica” (palavras da própria), Linn da Quebrada é uma das principais embaixadoras do movimento feminista e queer que vem ganhando cada vez mais protagonismo dentro da nova música brasileira. Um movimento transversal a identidades de género, mas liderado por mulheres — sobretudo mulheres negras —, de vários pontos do Brasil, de diversas classes sociais, de diferentes estéticas musicais. Num país em que a cada duas horas uma mulher é morta, a cada uma hora são assassinados três jovens negros e em que mais se mata pessoas LGBTI+, estas artistas fintam todos os dias as estatísticas e as balas para abrir portas a outros corpos subalternizados, para legitimar existências. Há um sentido de colectividade que as guia. Uma política do afecto.
“A música para mim funciona como magia, como feitiço, sabe? Faz com que acredite na minha própria existência, com que eu possa inventar as minhas próprias verdades, com que eu produza os meus próprios estímulos e influências sobre o meu corpo”, explica Linn da Quebrada, com palavras que encontram ressonância na foto da capa deste jornal, originária do seu novo videoclip, Coytada, uma das canções do disco Pajubá, funk brasileiro guloso e indomável capaz de derrubar qualquer macho-alfa sem levantar poeira. “A música constrói pontes, ajuda-me a chegar a pessoas que vivem experiências semelhantes às minhas”, acrescenta. “A minha voz torna-se coro, torna-se eco.”
Polarização político-social
É impossível desassociar este movimento do actual contexto sociopolítico do Brasil. Como escreveu o deputado e activista LGBT Jean Wyllys, tal como a bossa nova “correspondeu às transformações socioculturais do pós-guerra” e a Tropicália “foi a expressão musical da contracultura dos anos 60-70”, no contexto da ditadura militar, esta nova leva de artistas, impulsionada pela internet, faz frente à onda de conservadorismo e ao retrocesso político que voltaram a ganhar terreno no país, sobretudo após o golpe de Estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff — e cuja face mais visível nestes últimos meses tem sido Jair Bolsonaro, candidato da extrema-direita à presidência nas eleições de 7 de Outubro que diz que as mulheres devem ganhar menos porque engravidam, que filho gay é sinónimo de falta de porrada, que não corre risco de ter uma nora negra porque os filhos foram bem-educados, que diz a uma deputada que não a viola porque ela não merece. E que, por enquanto, lidera as intenções de voto na primeira volta, nas eleições mais imprevisíveis da história recente do país.
“O Brasil está numa polarização muito profunda. Ao mesmo tempo que há um reaccionarismo muito grande, há uma força revolucionária que não quer continuar com o país transfóbico, homofóbico e machista”, diagnostica Assucena Assucena de As Bahias e A Cozinha Mineira, banda de MPB encabeçada por duas cantoras-compositoras trans, cúmplices de Linn da Quebrada e outras das protagonistas deste movimento (atenções redobradas para o mais recente álbum, Bixa). Essa polarização político-social está também a “levar à censura”, comenta a artista, dando como exemplo o encerramento forçado da exposição Queermuseu, no ano passado em Porto Alegre, que entretanto foi reaberta no Rio de Janeiro, há um mês.
“Os espaços de poder estão numa disputa muito grande”, continua Assucena. “Essa onda reaccionária sempre esteve aqui, a questão é que a gente não estava com a cara no sol.” Quanto mais as mulheres e as populações negras e LGBTI+ ganham visibilidade e influência, mais a violência contra elas aumenta. Negra Jaque, um dos nomes fortes da colossal cena rap feminista brasileira, reforça: “Não é à toa que o período em que as mulheres negras mais se estão a identificar como mulheres negras, o feminicídio contra elas cresceu, enquanto o das mulheres brancas diminuiu. Eu ouço muitas coisas ruins na internet, ofensas racistas, ameaças. Não é brincadeira. As mulheres negras estão a incomodar muito”, conta a rapper, activista e professora de Porto Alegre.
Linn fala no medo das elites brasileiras em “perder território”. “Eles têm percebido que não é só canção de entretenimento. São canções de resistência, de disputa de território de linguagem, disputa dentro de um imaginário social. Por isso estão com tanto medo: cada vez mais estamos a responder a essa violência com os nossos corpos e de maneiras muito mais inteligentes que a maioria deles esperava e sabe fazer.” Os recentes ataques cibernéticos contra a página de Facebook “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, que em poucos dias contabilizou dois milhões de membros, é prova dessa insegurança. A resposta não tardou a chegar: o hashtag #EleNão tornou-se viral e agendaram-se manifestações contra Bolsonaro não só pelo Brasil inteiro como fora dele, incluindo em Lisboa, Porto, Covilhã e Coimbra, já este sábado.
“Os números de intenção de voto no Bolsonaro, na primeira volta, são já uma resposta dos sectores reaccionários a nós”, comenta Raquel Virgínia de As Bahias e A Cozinha Mineira. Lembra o assassinato da vereadora Marielle Franco, mulher negra da favela, lésbica e feminista, em Março. “A gente não sabe o nome da pessoa que matou Marielle, mas sabe quais foram os sectores. E sabemos que os assassinos da Marielle estão escancarados para nós. No Brasil, quem tem direito a falar é homem, branco, rico, cisgénero [quando a identidade de género coincide com o sexo e o género atribuídos à nascença]. Qualquer pessoa que fure isso está a correr risco de vida.”
Momento histórico
Apesar de todos estas forças contra-revolucionárias, vive-se um “momento histórico” no Brasil. “Não me lembro de ver um movimento LGBT assim no país”, assinala Assucena. “Temos artistas em que nos revemos, a cena musical está mais unida. Algo está a mudar.” Para a artista sedeada em São Paulo, as políticas afirmativas do governo de Lula da Silva (2003-2010), como as quotas raciais que permitiram aumentar o acesso de negros, pardos e indígenas às universidades, e de Dilma Rousseff (2011-2016), ajudaram também a intensificar este levantamento. “Houve um crescimento dos direitos civis e individuais. Não é à toa que esta cena LGBT eclode no final de 2015, quando aparece a Liniker [cantora-compositora trans, influência importante para Linn da Quebrada], quando nós aparecemos. Eu sou muito crítica do governo do Lula, mas de facto foi transformador.”
Esta militância na cena musical é um dos tentáculos de um movimento mais vasto e concertado de feminismo negro no Brasil, lembra Negra Jaque. “Está muita coisa linda acontecendo”, do cinema à literatura (ver a editora Padê Editorial), da medicina (ver o colectivo NegreX) aos estudos de género (a académica Djamila Ribeiro tem estado a ter, finalmente, o reconhecimento público que merece). Sem esquecer a política: nestas eleições, o número de candidatas negras subiu, tal como as candidaturas de mulheres indígenas e mulheres trans. Entre elas, estão a cantora carioca MC Carol e a produtora cultural e artista Erica Malunguinho, responsável pelo espaço Aparelha Luzia, um quilombo urbano em São Paulo por onde têm passado vários nomes desta nova música brasileira, como Luedji Luna, Drik Barbosa ou Monna Brutal.
“O feminismo negro está num momento incrível. As mulheres negras estão num momento de se entenderem e de se identificarem politicamente, e acho que isso é a única possibilidade de sobrevivência que temos de aqui para a frente”, declara Bah Lutz, vocalista e letrista de Bertha Lutz, banda de hardcore anti-les-bi-transfobia e anti-racismo de Belo Horizonte, para quem o punk e o feminismo interseccional foram “fundamentais” para começar a conseguir “nomear” as opressões intercruzadas que sofria enquanto mulher negra e lésbica. “Temos construído entre nós uma rede de apoio psicológica, afectiva, económica e material que nos garante mais força e coragem para pensar em estratégias que nos beneficiem e não aos mesmos que continuam a perpetuar o seu poder”, acrescenta Linn da Quebrada. Trata-se de abalar o status quo, mudar a estrutura. É como diz a escritora americana Angela Davis, nome histórico do feminismo negro (e com quem Linn já trocou algumas palavras): “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”
Pluralidades
Este movimento ajudou também a trazer à tona a pluralidade de linguagens que vivem e convivem dentro da música brasileira. O punk anda, e muito, por aqui: ouçamos Klitores Kaos, Útero Punk, Bioma, Kinderwhores, ou as já referidas Bertha Lutz. “O Brasil tem bandas de riot grrrl do extremo sul ao extremo norte, e muitas pessoas não sabem disso”, assinala Bah Lutz. Para contrariar o “apagamento” de uma história com “muitas multiplicidades” — e na sequência de um episódio racista de que foi alvo num concerto —, Bah lançou em 2016 a fanzine Preta & Riot, para a qual convoca mulheres negras envolvidas no riot grrrl e na cena rock independente. Este trabalho de mapeamento foi entretanto reforçado pela comunidade e página de divulgação União das Mulheres do Underground.
Noutros trânsitos sonoros, e a diluir fronteiras entre músicas brasileiras e africanas, está Luedji Luna. As canções do seu primeiro álbum, Um Corpo No Mundo (2017), atravessam o próprio corpo da autora. “Este disco nasceu porque saí da minha zona de conforto, Salvador, que é a cidade mais negra fora de África, e vim parar a São Paulo, cidade que passou por um processo de embranquecimento muito forte durante o período industrial.”
Filha de militantes negros de esquerda, a compositora não se revia na cidade. “É a velha discussão identitária do Brasil: é um país onde 53% da população é negra e parda e é um país que a todo o momento se pretende europeu. Um país onde há um genocídio da população negra e onde uma minoria branca de olho azul domina as tomadas de decisão na política e nos média.” Luedji começou a sentir-se “um pouco mais aliviada” quando viu migrantes africanos a chegar a São Paulo, mas, ao mesmo tempo, não tinha como dialogar com eles. “Eram parecidos comigo mas distantes por causa da língua e da cultura. Um Corpo No Mundo fala muito desse não-lugar que é o corpo negro da diáspora”, diz a cantora, que participou no novíssimo disco da angolana Aline Frazão.
Essa ideia de não-lugar e de diáspora materializa-se na sonoridade do disco, em que se baralha música baiana, jazz, samba-reggae, música do Congo, do Quénia ou de Cuba, e em que Luedji é coadjuvada por músicos de várias proveniências. Nestas canções, que são simultaneamente ferozes declarações de resistência e poesia melíflua e apaziguadora, há uma África estendida que remete para uma timeline de corpos negros no mundo. Desde a colonização e o tráfico negreiro até ao Brasil do genocídio do povo negro e da lesbofobia em pleno século XXI (Iodo + Now Frágil, uma colaboração com a poeta Tatiana Nascimento), passando pela Revolução Haitiana (1791-1804), feita por negros escravizados (ouvir Saudação Malungo), ou pela celebração das religiões afro-brasileiras.
“Quem ouve o disco fica meio sem entender se é música brasileira ou música africana”, conta a artista. Essa indefinição é bem-vinda. Para desempoeirar pensamentos, para romper com certos estereótipos — Luedji acredita que, no Brasil, ainda existe a expectativa de que quando uma mulher negra está na música é para cantar samba. “Eu amo samba, mas é importante entender que as pessoas negras não são uma massa homogénea. Esse mito que a indústria fonográfica determinou, também por conveniência, de que a gente só pode cantar certos tipos de música, silencia todas as demais. Vamos cantar samba e vamos cantar o que a gente quiser.”
E mesmo no samba há um processo de agitação em curso. Mulheres de várias etnias têm reivindicado e ocupado um lugar de protagonismo nas rodas de samba, no papel de musicistas, compositoras e vocalistas, recusando serem exoticizadas e secundarizadas. Um dos exemplos mais sonantes é o grupo Samba Que Elas Querem, do Rio de Janeiro, que explodiu nas redes sociais, e depois offline, com uma versão feminista de Mulheres, canção de Toninho Geraes famosa pela interpretação de Martinho da Vila e com letras machistas quanto baste (a propósito, consultar o site MMPB — Música Machista Popular Brasileira). Não foi por acaso que esta nova versão se tornou viral, nota Silvia Duffrayer, uma das oito mulheres artistas deste colectivo. “É um momento em que nós, mulheres, estamos a redescobrir o nosso lugar.”
“No samba, as mulheres sempre tiveram pouco espaço para se desenvolverem como musicistas ou compositoras. Mesmo hoje, com tantas mulheres a fazer e a tocar samba, ainda encontramos resistência por parte de grupos compostos por homens”, sublinha Silvia. “É muito mais comum a mulher ser convidada para fazer uma participação ou cantar, e não assumir o lugar de um músico na banda.” Este e outros grupos de sambistas mulheres, como Moça Prosa, ÉPreta, Sambadas ou Samba de Saia, dão destaque, nos seus concertos, ao reportório de cantoras e compositoras como Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Beth Carvalho, Clementina de Jesus, Leci Brandão ou, claro, a incontornável Elza Soares, cujo disco A Mulher do Fim do Mundo, editado em 2015, foi um importante estímulo para o movimento de que damos conta nestas páginas.
Toda esta multiplicidade de músicas, linguagens e corpos é fundamental para se tentar diversificar e ampliar o cânone da música brasileira, ao mesmo tempo que se rasga com padrões hegemónicos de beleza. É urgente ouvir Negona ou Cabelo Crespo de Negra Jaque, no disco Deus Que Dança. Ver o videoclip de Pra Que Me Chamas?, de Xênia França, outra das artistas na linha da frente deste movimento. Perceber como Linn da Quebrada cria sobre o seu próprio corpo e através dele, construindo-se e desconstruindo-se. E é urgente ouvir os versos pugilistas e bem certeiros de Bah Lutz na canção-manifesto Preta Gorda Sapatão, do poderoso disco Minha Resistência É Minha Revolução (2018): “Corpo político, desviante, fora do padrão/ Que não encaixa em sua cor, em sua relação (.) Sou sapatona preta, sem vergonha da minha existência/ Cento e dois quilos de pura resistência.”
“O que nós estamos a fazer na música é um rompimento de imagem”, defende Raquel Virgínia de As Bahias e A Cozinha Mineira. “O Brasil é machista, racista e branco ideologicamente. Quando vês a TV Globo até parece que é um país europeu do hemisfério norte, sendo que na verdade é maioritariamente negro. Se os referenciais de poder e os símbolos do país são brancos, as pessoas vão criando uma ideologia na cabeça delas”, enquadra a cantora-compositora. “O Brasil não enxerga o Brasil em mim, enxerga o Brasil da [modelo] Gisele Bündchen.” Atrelado a isto vem o epistemicídio da produção intelectual negra. “Tu cresces a acreditar que as grandes viragens intelectuais do Brasil foram feitas por brancos, e até virares essa chave tens de nadar contra uma maré muito forte”, aponta Raquel. “Não estou a dizer que as pessoas brancas não contribuíram ou não contribuem para a formação da nossa cultura, mas há um branqueamento e uma distorção. É também por isto que chegas ao Bolsonaro.”
Racismo e classismo
Este levantamento de mulheres na música brasileira é dinamizado ainda por uma rede de editoras, agências, projectos educativos (como o acampamento para meninas Girls Rock Camp), promotoras, eventos, espaços (como o renascido Motim, no Rio) e plataformas de comunicação independentes, que servem também para cartografar o movimento. São projectos conduzidos por mulheres em que o sentido de comunidade e partilha é vital. Foi pela vontade de “juntar conhecimentos em prol da fomentação” da cena de música independente que surgiu a PWR Records, editora e promotora a funcionar entre o Recife e São Paulo, cujo catálogo inclui nomes como Papisa, Miêta ou Ema Stoned. “Nós gostamos de provocar encontros, encurtar distâncias, juntar artistas e colaborar”, resume Letícia Tomás, responsável pelo projecto juntamente com Hannah Carvalho e Bells Delfiol. Ainda são “um selo muito branco”, coisa que as incomoda — e por isso mesmo estão a “traçar estratégias” para aumentar a representação de mulheres negras tanto na editora como nos concertos.
Letícia mudou-se recentemente do Recife para São Paulo com o objectivo de fazer crescer o projecto — “as atenções” e o “pouco dinheiro” que existe concentram-se em São Paulo, que acaba por ser o epicentro deste movimento. A falta de recursos é, aliás, uma das maiores dores de cabeça de quem se move na música independente, nota Luedji Luna — e a aguda precarização da cultura no país só piora o cenário. “O dinheiro sempre foi uma barreira. E no Brasil, quando falamos de classe falamos de raça”, lembra Bah Lutz. “Quem é mais pobre no Brasil é preto. É uma coisa demarcada.”
Esta estrutura afecta não só as condições de criação dos músicos como o acesso do próprio público aos eventos, aponta a vocalista de Bertha Lutz. “Falta trazer para o debate o racismo e o classismo na cena independente, porque se não pensares nisso não consegues melhorar o acesso de pessoas negras aos concertos”, reforça Daniele Rodrigues, produtora cultural de Porto Alegre, publicitária e responsável pela plataforma de divulgação e comunicação We Are Not With The Band juntamente com Filipa Andreia, fotógrafa portuguesa a residir em São Paulo. Num país onde uma mulher negra recebe, em média, menos 40% do que um homem branco, é preciso “pensar em políticas afirmativas de acesso”. “Tens de trazer essas questões para a venda dos bilhetes e para o local onde fazes o evento, senão estás a reproduzir a lógica de exclusão do racismo estrutural. Os produtores culturais no Brasil ainda têm dificuldade em perceber como funcionam os privilégios”, considera Daniele.
Negra Jaque, que já participou em vários eventos organizados por Daniele, concorda com a produtora. “A história do Brasil é baseada numa estrutura racista e a nossa vida é consequência de tudo isso. Muitas vezes querem contratar-nos de graça para um evento e sem qualquer meio de transporte”, conta a rapper, habitante do Morro da Cruz, em Porto Alegre. “Não é simples eu chegar a um lugar, sabe? Moro numa periferia, à noite preciso de um carro porque não dá para andar por aí sozinha e muitas vezes os condutores do Uber não querem subir até ao Morro. Não é só convidar, é necessário dar condições.” Não é fácil dar a volta a tudo isto, mas as mulheres negras estão a começar a colocar “como prioridade” essa discussão sobre o racismo e o classismo na cena musical, afirma Bah Lutz. E a apostar num trabalho de “entreajuda” e “troca de recursos”, desde a gravação à divulgação online, acrescenta Daniele Rodrigues. “Fazer coisas com mulheres negras é muito a resistência da resistência.”
Não é só dor, é amor
Brasil, 2018. No meio do caos, há sorrisos contagiantes, corpos que são o que querem ser. “Eu estou aqui, entendeu? Se existe uma trans no Brasil a falar para um jornal português é porque há uma questão de visibilidade e representatividade a acontecer”, diz Assucena Assucena. Para as cantoras-compositoras de As Bahias e A Cozinha Mineira, que ganharam dois galardões do Prémio da Música Brasileira e que têm um programa de televisão no canal Music Box Brazil, a música consegue chegar aonde a política partidária não chega. “A música no Brasil ainda tem posturas reaccionárias dentro da indústria cultural, mas existe um ponto poético, um lado transcendental que vai rompendo com barreiras”, considera Raquel Virgínia. “Quando uma pessoa percebe que se emocionou com música feita por mulheres trans, a imagem pejorativa que ela tem delas pode deslocar-se e passa a olhar para nós com dignidade.”
Num país onde os corpos trans estão constantemente à beira da morte — entre 2008 e 2017 foram registados mais de 1000 homicídios de pessoas transgénero e a expectativa de vida de uma mulher trans é de 35 anos —, ter estas artistas em cima de um palco, a ocupar um lugar de fala, pode transformar vidas. “As pessoas saem do nosso concerto a dizer ‘não me suicidei porque vos ouvi’, ou ‘vocês deram-me coragem para iniciar o meu processo de transição de género’. É isso que nos alimenta”, afirma Assucena. Não é só dor, é amor. “Através da música tenho conseguido viver um espaço que eu nem achava possível”, confessa Linn da Quebrada. “Não só um espaço de admiração, mas um espaço de celebração das nossas identidades. Acho que uma das coisas mais prazerosas é poder fazer com que esse discurso se propague.”
Brasil 2018, e agora? Bolsonaro dentro ou Bolsonaro fora, a luta continua. “Ganhe quem ganhar, é luta, amor. Quando se é negra, trans e nascida na periferia, só há esse caminho”, diz Raquel. Linn: “Parar de lutar nunca foi uma questão. A resistência, ela é reactiva, né? Ela vem principalmente quando nós vemos esses outros vectores que a todo o momento nos tentam exterminar.” Mulheres do fim do mundo (Elza Soares outra vez, agora e sempre), mulheres de um novo mundo. A (r)existência delas pode ser a revolução de um país.