2018 foi o ano em que ganharam um prémio — e em que lhes aconteceram outras coisas
A ilustradora Madalena Matoso, o galerista Nuno Centeno, a arquitecta Inês Lobo e o investigador Emanuel Cameira são apenas alguns dos portugueses que em 2018 se viram premiados pelo trabalho que vêm desenvolvendo em diferentes áreas da cultura, e a que a pressa dos dias não nos permitiu dar a devida atenção. Agora que o ano em que se distinguiram está a terminar, recuámos a esses dias que ficaram marcados a bold nos seus calendários.
Madalena Matoso: “O livro continua a ser o objecto de design mais incrível, ao nível da roda”
No primeiro plano dos seus livros, mesmo antes de chegarmos às letras, há quase sempre um padrão gráfico que nos puxa para dentro. Pelas cores que atraem, pela capacidade que tem de divertir e de intrigar, pelas ilusões que cria. É assim em Cá Dentro – Guia para Descobrir o Cérebro, é assim em Não é Nada Difícil – O Livro dos Labirintos, que lhe valeu este ano, e pela segunda vez, o Prémio Nacional de Ilustração. Madalena Matoso desenha desde sempre. É-lhe tão natural quanto contar histórias recorrendo à cor e às formas que vai recortando em papéis de texturas variadas. É-lhe natural, mas não é fácil.
“Quando digo que não sou uma virtuosa do desenho, quero dizer que tudo isto para mim é difícil. Às vezes a minha mão não consegue corresponder ao que imagino – os desenhos que tenho na cabeça são melhores do que os que consigo pôr no papel”, diz esta autora de 44 anos que em 2018 viu ainda Não é Nada Difícil ser considerado uma das 30 melhores obras visuais do mundo pela New York Rights Fair, uma importante feira internacional do negócio livreiro.
As dificuldades, explica, obrigam-na a criar outros recursos, impedem-na de ficar acomodada a uma fórmula. “Alguns caminhos surgem precisamente na busca de soluções para resolver os tais problemas entre a cabeça e a mão.” E alguns livros surgem de contaminações, nascem quando se está a trabalhar noutro projecto. Foi o caso de Não é Nada Difícil, que está cheio de labirintos. “A ideia de labirinto estava muito presente no Cá Dentro [com texto de Isabel Minhós Martins e Maria Manuel Pedrosa], que é um livro para ajudar a descobrir o cérebro e foi um projecto muito intenso, em que trabalhei cerca de seis meses em exclusivo. Fiquei com vontade de mexer nos labirintos de forma mais lúdica.”
Formada em Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e com uma pós-graduação em Design Gráfico Editorial pela Faculdade de Belas-Artes de Barcelona, Matoso enveredou também pela edição. Em 1999 fundou com mais três amigos do liceu – Minhós Martins, Bernardo P. Carvalho e João Gomes de Abreu, todos eles autores – o Planeta Tangerina, um atelier de ilustração que a partir de 2006 começou a editar álbuns, arrancando com Uma Mesa é Uma Mesa (Isabel Minhós Martins/Madalena Matoso) e com dois livros da dupla Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho: Obrigado a Todos e Pê de Pai, este último já um sucesso “clássico” do Planeta.
“Queríamos editar os nossos projectos e os de outros em que acreditássemos, queríamos arriscar mais e não ficar a meio caminho como as editoras mais tradicionais. E fazer isso à nossa maneira, sem ter de discutir a qualidade de papel, as cores que podíamos usar…”
No Planeta Tangerina, garante a ilustradora que está já a trabalhar num novo livro com saída marcada para Fevereiro, Metade Metade, só se discute "o importante”. “Somos amigos há muitos anos, gostamos de conversar sobre o que cada um anda a fazer e temos a tendência para mudar de direcção. Gosto deste lado de trabalho de equipa. O Pê de Pai, por exemplo, nunca sairia como saiu, com cores mais secas, cheio de castanhos, se fosse proposto a uma editora mais convencional.”
Madalena Matoso não tem dúvidas de que o melhor que os quatro amigos podiam ter feito foi mesmo publicar os seus próprios livros.
É claro que, também nesta dimensão, a coisa não é fácil. Apesar de o mercado nacional ter ganho reconhecida vitalidade nos últimos sete ou oito anos, defende a ilustradora, a verdade é que as tiragens continuam a ser pequenas (1500 ou 2000 exemplares) e o número de títulos editados por ano reduzido. “Aqui no Planeta editamos seis ou sete livros por ano, mas gostamos assim. Damos tempo aos projectos. É claro que [o negócio] não seria sustentável, não daria para vivermos, se não vendêssemos os direitos dos nossos livros para muitos países. É por isso, sobretudo, que participamos em feiras e concursos internacionais – para mostrar e promover o que fazemos.”
Matoso tem vários dos seus livros traduzidos em múltiplas línguas e hoje os originais do seu Não é Nada Difícil estão expostos no Japão, depois de terem passado por Nova Iorque e Bolonha. Falamos de originais porque esta ilustradora, que traz da infância as memórias de tardes passadas a desenhar sobre a mesa, a Miffy de Dick Bruna ou A Fada Oriana de Sophia de Mello Breyner com ilustrações de Luís Noronha da Costa, continua a preferir fazer boa parte do trabalho à mão. Mostrando sobre o seu estirador as folhas com as “experiências” para o novo livro com o mesmo cuidado com que procura as palavras para falar com entusiasmo do seu trabalho e do dos amigos, Madalena Matoso explica: “No computador há a tendência para produzir de mais porque é rápido, fácil de corrigir… Quando mudo de técnica e trabalho com papéis, com recortes, parece que o desenho ganha vida e se faz quase sozinho.”
Fazer à mão dá-lhe um imenso prazer e permite-lhe reflectir mais sobre cada traço, sobre o ritmo que vai impor à história. “O ritmo não se vê, mas está lá, faz parte da leitura e temos de pensar nele, criando em cada livro uma harmonia entre as páginas que se passam depressa e as que precisam de tempo.” Tudo na experiência de ler conta porque, para ela, “o livro continua a ser o objecto de design mais incrível, ao nível da roda": "Um universo gigante compactado entre uma capa e uma contracapa.” Lucinda Canelas
Nuno Centeno: “Fui-me tornando galerista quase sem querer”
Quando Nuno Centeno (n. Porto, 1979) diz que, na sua vida profissional, “as coisas vão acontecendo de uma forma muito espontânea, passo a passo, mas sempre a subir um degrau”, não está apenas a referir-se ao percurso normal de uma carreira. Há também um significado literal: passada praticamente uma década sobre a abertura da sua primeira galeria, a Reflexus, frente ao Palácio de Cristal, no Porto, Nuno Centeno inaugurou em Setembro a sua nova galeria em nome próprio na zona mais alta da cidade, recuperando e transformando a antiga oficina da Cooperativa dos Pedreiros num espaço invulgarmente apelativo para quem se interessa pelas coisas das artes, e não só.
Subimos a rampa que dá acesso à nova Galeria Nuno Centeno (na Rua da Alegria, 598) sem nenhum sinal do que nos espera. Uma porta de vidro transparente oferece-nos a visão das peças da exposição aí patente – no caso, Natureza dinâmica, do artista conceptual belga Philippe Van Snick –, mas também uma viagem no tempo até à arquitectura brutalista do que foram as instalações originais, entre os anos 1940-90, da cooperativa ligada à edificação de alguns ícones patrimoniais da cidade, da Estação de São Bento aos Paços do Concelho ou ao Monumento à Guerra Peninsular.
Numa espécie de open space cheio de cantos e recantos, que se espraia por mais de mil metros quadrados, o espaço para a arte, desenhado pelo arquitecto André Gonçalves, convive paredes meias com vestígios de tanques, canais de água, máquinas de cortar pedra, tornos mecânicos, trilhos de vagões de carga e mesas com tampos de mármore…
“Isto foi a concretização do sonho que eu sempre tive de arranjar um espaço amplo, com boas condições para receber as pessoas e que fugisse aos moldes da tradicional galeria white cube”, diz Nuno Centeno, explicando ter também pretendido preservar a memória histórica do espaço.
Após 12 meses de obras, a inauguração da nova Galeria Nuno Centeno veio concluir um ano especialmente feliz para o galerista: o ano em que foi premiado pelo melhor stand na feira internacional Frieze, de Nova Iorque; e em que integrou a lista das figuras mais inspiradoras (com menos de 40 anos) para o Apollo – The International Art Magazine, de Londres.
“Foram todos pequenos grandes acontecimentos que me ajudaram a ganhar confiança”, diz Centeno, realçando que estas duas distinções vêm suceder à sua inclusão na lista dos dez galeristas mais influentes na Europa do site ArtNet, em 2016.
“Essa foi um bocadinho o início de tudo”, e ao mesmo tempo “o resumo dos primeiros dez anos de carreira”, observa. Nuno Centeno, filho do artista plástico Sobral Centeno (n. Porto, 1948), iniciara, de facto, a sua actividade no mercado da arte uma década antes, depois de ter vivido e estudado no Brasil, aproveitando os contactos do pai.
Começou por frequentar um curso de Design Industrial na Cooperativa Árvore, no Porto, mas, em 2000, rumou ao outro lado do Atlântico para estudar na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. “Sempre achei, desde pequeno, até pela envolvência familiar, que iria seguir o ramo das artes; dizia assim: ‘Vou ser artista e abrir um espaço’. Mas, quando me apercebi, era galerista. Fui-me tornando galerista quase sem querer. Foi um processo muito intuitivo”, conta.
Chegado agora ao “topo” da sua cidade natal, Nuno Centeno propõe-se colocar a sua nova galeria (e o Porto) “no mapa internacional das artes”, simultaneamente “respeitando aquilo que foi feito nas últimas décadas” e olhando para o futuro.
E o futuro passa igualmente pela aposta em dois outros projectos: a Artist Book Gallery e o Sculpture Park and Outdoor Tendencies (SPOT). A primeira é uma espécie de submarca da Nuno Centeno, que aproveita a atmosfera brutalista da antiga caverna dos pedreiros para expor livros de artista. Aí se podem folhear, actualmente, livros-objectos-de-arte de Sobral Centeno – “Tenho vindo a fazer uma investigação grande da obra do meu pai”, diz Nuno, “e esta é uma forma de chamar a atenção para o trabalho dele” –, Julião Sarmento, Carolina Pimenta, Nuno Sousa Vieira e Filipe Cortez. “A ideia é que os livros sejam exibidos fisicamente, mas que também sejam fotografados e filmados para ganharem uma segunda vida online”, diz o galerista, com a perspectiva de criar uma base de dados neste domínio, com a qual possa “educar os coleccionadores e o público em geral a prestar mais atenção a estes objectos raros e preciosíssimos”.
O SPOT, em fase de lançamento, é uma parceria de Centeno com Rita Almeida Freitas, um parque de arte pública ao ar livre (actualmente numa casa privada), aberto a coleccionadores privados mas também a instituições públicas, com a expectativa de lhes abrir “novos horizontes em termos de aquisição”.
Já na galeria da Rua da Alegria, para o novo ano, e cumprindo o projecto de olhar simultaneamente para o passado, o presente e o futuro, Nuno Centeno vai expor a brasileira de origem japonesa Lydia Okumura e os portugueses Silvestre Pestana, Carolina Pimenta, Ana Cardoso, Luísa Mota e Mauro Cerqueira, entre outros. Sérgio C. Andrade
Inês Lobo: “A arquitectura é um acto de investigação permanente”
Em cima da mesa do atelier estão os desenhos de um aldeamento para a Comporta, sobre o qual a arquitecta Inês Lobo, 52 anos, não vai entrar em detalhes. É uma encomenda privada e o segredo pode mesmo ser a alma de parte deste negócio ligado ao turismo. “Acho que todos os ateliers têm agora mais encomenda privada do que pública. Tivemos um momento em Portugal em que andámos a construir aquilo que os outros países já tinham: universidades, bibliotecas, museus.” Depois, chegaram às mãos deste atelier projectos de recuperação da Parque Escolar (quatro escolas espalhadas por várias cidades) e a requalificação do espaço público, com alguns estudos para Lisboa. “Construiu-se muita coisa que eventualmente já não temos necessidade de continuar a construir. Esse momento, em que nós tivemos a sorte de participar através de muitos concursos públicos, não vai voltar a acontecer tão cedo.”
Mas as mudanças dos últimos tempos serão assunto apenas no final desta conversa que teve lugar no atelier situado no lisboeta bairro de Marvila, para onde Inês Lobo se mudou em 2016. Se a recuperação económica trouxe outro tipo de projectos a um dos raros ateliers conhecidos que é liderado por uma mulher em Portugal, o Prémio Associação Internacional dos Críticos de Arte (AICA) que recebeu este ano destacou a sua capacidade “ímpar” de montar estratégias de trabalho muito diversas. Da pequena à grande escala, da investigação ao desenho do edifício e da cidade, da qualidade da construção à dimensão social da arquitectura, da capacidade de colaborar com outros arquitectos à curadoria, uma “situação muito invulgar no panorama da arquitectura portuguesa”, escreveu o júri.
O Prémio AICA, atribuído em parceria com o Ministério da Cultura e a Fundação Millenium bcp, foi inesperado para Inês Lobo. “Como hoje há a fúria dos prémios, a nossa relação com eles é de uma certa distância. Há imensos: uns a que temos de concorrer, outros em que somos convidados, outros ainda em que se paga para entrar. É um universo que está um pouco pervertido. Já o prémio AICA é o oposto disso, porque são os nossos pares próximos que decidem que o nosso trabalho deve ser reconhecido.”
A distinção é também o reconhecimento de que a diversificação do percurso profissional do atelier estava certa depois de a crise ter obrigado a equipa a pensar o que podia continuar a fazer em termos de arquitectura pública. “Ficámos muito contentes porque o prémio reconheceu não só a arquitectura enquanto encomenda e reposta, mas que a arquitectura é, per se, um acto de investigação permanente.”
Essa inversão chegou por volta de 2012, quando Inês Lobo foi convidada para comissariar a representação nacional na Bienal de Veneza de Arquitectura, dedicada às várias transformações na cidade de Lisboa que começaram com a intervenção de Álvaro Siza no Chiado, depois do incêndio de 1988. A curadoria da Bienal de Veneza e a reflexão acerca do que tinha sido a construção de Lisboa nesses anos levaram-a a fazer uma série de trabalhos, tal como o que se iniciou com o projecto para a Mesquita da Mouraria. Apesar de a construção do futuro templo da Rua da Palma estar atrasada devido às expropriações, o projecto serviu para desenvolver nos últimos dois anos um trabalho com os alunos sobre requalificação do espaço público na Avenida Almirante Reis. O resultado vai sair brevemente num livro, intitulado Atlas da Almirante Reis, edição conjunta das universidades Autónoma e Nova, com textos de vários autores e fotografias de Paulo Catrica. De certa forma, explica Inês Lobo, “foi a forma de continuar a participar na arquitectura enquanto arte pública e não apenas enquanto arte privada”.
Este ano, Inês Lobo foi também convidada pelas comissárias-gerais da Bienal de Veneza para mostrar um trabalho de requalificação de espaço público que fez em 2015 para a cidade italiana de Bérgamo. Com Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura, Inês Lobo completava a participação portuguesa na exposição principal da bienal com a obra Um Banco, um Espaço Livre para Cem Pessoas. “Gostei muito do tema do espaço livre, da arquitectura ter de reflectir constantemente sobre o espaço que é de todos.”
O projecto de Bérgamo também foi nomeado recentemente para o Prémio Secil, desta vez juntamente com a Biblioteca e Arquivo de Angra do Heroísmo, uma obra magnífica cuja construção foi várias vezes interrompida pela crise e levou uma década a terminar. Outro dos seus projectos, uma casa na rua do Quelhas, em Lisboa, feita em parceria com o arquitecto paulista Paulo Mendes da Rocha, um gigante da arquitectura brasileira, foi igualmente nomeado para o Prémio Mies van der Rohe.
Por causas das colaborações com outros arquitectos – Inês Lobo teve igualmente projectos em parceria com Pedro Domingos, Carlos Vilela, Ricardo Bak Gordon, João Maria Trindade ou João Mendes Ribeiro –, regressámos ao tema do género, de que a arquitecta falou detalhadamente quando recebeu o Prémio arcVision – Women and Architecture em 2014. “Por ser mulher, tenho, eventualmente, uma certa facilidade em lidar com situações de colaboração. Os homens, de uma forma geral, são mais competitivos. Sempre fiz projectos em parceria e gosto bastante. É um momento em que se pode discutir arquitectura com um parceiro da forma mais intensa possível. ” Mas, tal como há quatro anos, apesar de o tema ser “incontornável e fundamental na sociedade”, Inês Lobo não pensa “que os grandes problemas na questão de género aconteçam especificamente na arquitectura”. Muito menos, acrescenta, com ela. Isabel Salema
Emanuel Cameira: "A trajectória de Vitor Silva Tavares é completamente improvável"
Se a história de um editor contemporâneo, e que ainda por cima teimou em “permanecer amadorístico e minúsculo e quase artesanal”, já não constitui, à partida, o tópico mais óbvio para uma tese de doutoramento em sociologia, a dissertação A &etc de Vitor Silva Tavares: narrativa histórico-sociológica, de Emanuel Cameira, soma ainda outras singularidades, como a de ser escrita na primeira pessoa, tornando-se de algum modo a narrativa de uma investigação, e não apenas o seu resultado.
Defendida no início deste ano perante um júri que incluiu, entre outros, o historiador Diogo Ramada Curto e Rosa Maria Martelo, uma ensaísta que tem dedicado particular atenção à poesia portuguesa contemporânea, a tese de Cameira venceu recentemente, ex-aequo com um trabalho de José Avelãs Nunes sobre a arquitectura dos sanatórios portugueses, o prémio Victor de Sá de História Contemporânea, atribuído pela Universidade Minho.
Um prémio que considera genuinamente “prestigiante”, mas que recebeu com sentimentos contraditórios. Se o satisfaz ver reconhecido um trabalho, “por natureza solitário”, no qual investiu seis anos, e se os 1750 euros de meio prémio lhe dão certamente jeito, esta distinção também vem acentuar a injustiça da situação profissional em que se encontra, precária, mal paga e sem horizontes. Os treze anos já decorridos desde que se licenciou pelo ISCTE, onde hoje dá aulas, ainda não foram suficientes para este investigador de 36 anos, pai de duas filhas pequenas, conseguir um emprego minimamente estável: “É muito difícil chegar a professor do quadro, porque quase não abrem vagas, e quando abrem já estão atribuídas, e a lógica da universidade é hoje totalmente contrária a tudo o que seja dar tempo às pessoas para produzir coisas de qualidade”, lamenta o investigador. “O prémio é óptimo, mas não muda o dia-a-dia”, resume, sublinhando que só evoca estas suas dificuldades para não se pensar que é “uma pessoa instalada e que vive maravilhosamente”.
Entre a licenciatura e o início da docência, Emanuel Cameira frequentou um mestrado em Estudos Curatoriais na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa que acabaria por ter um efeito colateral importante, proporcionando o seu primeiro encontro a três dimensões com Vitor Silva Tavares (VST). No âmbito desse mestrado co-organizou a exposição João César Monteiro: Assim e Não Assado, que esteve em 2010 no Convento dos Cardaes, em Lisboa, e para cujo catálogo VST viria a escrever um texto. “Conheci-o nessa altura, na Rua da Emenda [onde funcionava a &etc], conta Emanuel Cameira. “Já era leitor assíduo e coleccionador das edições &etc e depois fez-se um clique qualquer na minha cabeça em termos sociológicos e decidi fazer esta tese”.
Leitor de poesia e apreciador de edições artesanais, ele próprio veio a dar o gosto ao dedo com a revista-almanaque Postas de Pescada, lançada em 2016 com a ilustradora Ana Biscaia, de que saíram dez números, com colaboração de poetas como A. M. Pires Cabral, Carlos Poças Falcão ou Manuel de Freitas. Com a mesma chancela, editaram ainda o volume colectivo Arar (2017), que recuperava um texto homónimo de VST originalmente publicado por Paulo da Costa Domingos na Frenesi, em 1984.
Decidido a eleger a &etc como tema da sua tese de doutoramento, uma das questões prévias que o investigador se colocou foi a de saber “como se estuda algo que parece funcionar quase fora do social”, ou seja, passar dessa imagem de uma editora que todos elogiam como singular e marginal para “tentar perceber como se tinha chegado àquele figurino, como aquela singularidade editorial se alicerçava numa série de outras singularidades”. E desde logo a do invulgaríssimo percurso de vida do editor: “A trajectória de Vitor Silva Tavares é completamente improvável, e é fascinante, enquanto desafio à compreensão sociológica, tentar compreender como é que alguém que não tinha nada, que não tinha livros em casa, que não tinha que comer, acaba por ser um decisivo na edição literária portuguesa da segunda metade do século XX.”
Não surpreende, portanto, que esta narrativa histórico-sociológica da &etc inclua uma verdadeira biografia de VST, para a qual o próprio contribuiu disponibilizando-se para uma série de conversas com Emanuel Cameira. Desses anos da infância na Madragoa, quando vivia com mais 12 pessoas num espaço que se resumia a “meia varanda, uma sala, um corredor e meia cozinha”, o futuro editor recordava “uma cama muito grande que ocupava praticamente o espaço todo daquilo a que pomposamente se podia chamar sala", onde dormiam a avó, as tias e ele próprio, "rodeado de mamas por todo o lado”.
Cameira acha que a sua dissertação “não belisca de todo a imagem” de VST e da &etc. Pelo contrário, muito do material que investigou confirma essa ideia de “uma editora que funcionava nos antípodas desta lógica de indústria cultural”, reforça a intuição de que a edição serviu a Vitor Silva Tavares como um modo de “afirmação criativa” e não perturba o retrato que dele foi sendo feito como “um indivíduo quase à parte”, comparável, segundo o investigador, a “figuras como João César Monteiro ou Luís Pacheco nos seus respectivos campos de actividade”.
Mas o trabalho de Cameira permite também perceber que sem o respaldo económico que lhe foi sempre sendo assegurado por Célia Henriques, com quem se casou em 1965, e que provinha de uma família portuense abastada mas de convicções progressistas, Vitor Silva Tavares nunca teria podido manter a &etc nos moldes em que ela existiu. “Os livros eram caros de fazer, porque tinham bons acabamentos, e vendiam-se pouco”, nota Cameira, o que deveria levar qualquer um a perguntar-se como podia a &etc sobreviver quando tantas outras editoras iam fechando portas. Uma boa parte da resposta chama-se Célia Henriques, defende agora esta tese com uma clareza até aqui nunca assumida.
Outra dimensão pouco conhecida que emerge dos arquivos pessoais a que o investigador teve acesso é a de um Vitor Silva Tavares que se via a si próprio como um escritor e um artista visual falhados. “Há documentos, alguns publicados na dissertação com a autorização da família, em que ele mostra uma certa tristeza por não alcançar a Obra, com maiúscula”, diz Cameira, sugerindo que “é também por isso que ele busca uma afirmação criativa noutro plano, na edição”.
O momento mais complexo na escrita deste trabalho agora premiado foi, claro, a morte de Vitor Silva Tavares. “A tese esteve parada dois meses, não sabia como dar a volta àquilo, tinha criado uma afinidade pessoal com o meu objecto de estudo e ele morreu-me, literalmente”. O instante ficou, aliás, inscrito no texto. Entre um parágrafo sobre as tertúlias nos cafés e uma citação que ajuda a contextualizar o que está a descrever, Emanuel Cameira introduz esta frase em maiúsculas: “Vitor Silva Tavares faleceu hoje, 21 de Setembro de 2015. Triste tese. Como prosseguir?”.
Mas a morte de VST deu também ao investigador a oportunidade e a responsabilidade de aceder aos papéis do editor, cuja consulta lhe foi facultada pelos familiares. “Artigos de jornal, folhetos, memórias descritivas, livros de contas, textos literários”, inventaria Emanuel Cameira, sublinhando que só então teve noção da intensidade com que Vitor Silva Tavares se dedicava à escrita: “São centenas de textos, para não dizer milhares, que ele escrevia em papelinhos, em guardanapos, em todo o lado, e atirava para as gavetas”. Luís Miguel Queirós