Vergonha

Senhor primeiro-ministro: se está preocupado com cirurgias adiadas, preocupe-se com doentes a quem não deixa dar tratamento.

O Dr. António Costa mostrou-se indignado com a possibilidade de poderem ter acontecido mortes por causa de cirurgias adiadas, em consequência da greve dos enfermeiros. Tem razão. Mas esquece-se que, se tivesse tido capacidade real de liderança, se não tivesse prometido o “bacalhau a pataco”, se tivesse contido a descapitalização do SNS, perpetrada pelo Dr. Centeno e o Governo que dirige, se tivesse acautelado os efeitos da greve com um plano de contingência imediato, escusaria de ir agora mostrar-se chocado no Parlamento. A senhora ministra da Saúde que se cuide e, para lá de andar a pedir contenção verbal às Ordens profissionais, matéria em que o PS, a da contenção verbal, nunca foi pródigo, não prometa já que vai reagendar tudo até Março, porque 5000 cirurgias não são coisa pouca.

Mas há uma outra vergonha no SNS a que ninguém quer prestar atenção. Trata-se da mudança de critérios para autorização de utilização especial de medicamentos que foi operada no Infarmed. Este organismo do Estado, sob tutela do Ministério da Saúde, que não é um órgão independente, sem que se conheçam linhas de orientação terapêutica que sugiram o contrário, desde o final do Verão de 2018, depois de meses em que mostrou um atitude de respeito para com o sofrimento dos doentes, passou a recusar quase todos os tratamentos inovadores que poderiam ser usados em oncologia.

A vergonha é tão grande quanto essas recusas se baseiam em pareceres de supostos peritos médicos, manifestamente desconhecedores da melhor prática, escritos com erros técnicos grosseiros, escondidos a coberto de anonimato, prestando-se a dar pareceres sobre doentes que não conhecem, recomendando tratamentos também não aprovados e condenando ao sofrimento pessoas para quem nunca olharam. Tenho vergonha por saber que há colegas que se prestam a tão sujo serviço, o de negar tratamento, argumentando com economias que não deviam ser as suas, violando o seu sagrado dever de tudo fazer para assegurar que ninguém pode ficar sem o direito ao tratamento de que precisa. Isto não é medicina baseada na evidência, é serviço político e má prática médica.

Seria bom que o Dr. António Costa e a nova ministra da Saúde olhassem também para este assunto, para um sistema de avaliação de tecnologias da saúde que não funciona, e para um Infarmed que se tornou num agente de contenção orçamental em vez de ser só a garantia de acesso atempado a medicamentos indispensáveis e de qualidade. É certo que a Indústria Farmacêutica pratica preços obscenos que devem ser contrariados, mas a sustentabilidade do SNS não pode ser feita à custa dos doentes. E não vale a pena argumentar que têm “autorizado” muitos inovadores, quando não permitem a compra dos mais importantes e não apresentam nenhuma estratégia de prioridades. Vergonha para si, senhor primeiro-ministro. Se está preocupado com cirurgias adiadas, preocupe-se com doentes a quem não deixa dar tratamento.

Apesar de não ser obrigado, o autor declara que, desde 2016, foi consultor, investigador e formador das empresas Amgen, Celgene, Gilead, Janssen, Servier, Pharmamar e Takeda, como consta da declaração de interesses publicada no portal da transparência do Infarmed.

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