Marco Martins lançou achas na fogueira

Um realizador que lida com a abundância publicitária é capaz de empatia com a precaridade. Um tipo que não aprecia televisão fez algo que durante oito semanas foi o acontecimento lúdico, adulto e inteligente de toda a TV portuguesa. Provisional Figures: Great Yarmouth e Sara foram dele e agora são os nossos melhores de 2018.

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Miguel Manso

O melhor teatro e a melhor televisão foram dele. Com Provisional Figures: Great Yarmouth, Marco Martins continuou a interceptar a violência da crise nos corpos, trazendo para o palco a síntese de dois anos de trabalho em Inglaterra junto de um “matadouro” da dignidade, um colosso da indústria alimentar do Reino Unido movido a mão-de-obra barata importada da periferia da União Europeia. Isto, que foi o espectáculo de 2018 para o Ípsilon, vai dar, em 2019, um filme — tendo em conta as derivas do encenador/realizador, será proposta de elevação do real pela ficção. Como é que um homem que faz publicidade, que lida com o conforto da abundância audiovisual, é capaz de empatia com a precaridade?

E como é que um tipo que não aprecia televisão faz Sara, o retrato caleidoscópico de uma actriz em crise de lágrimas que durante oito semanas foi o acontecimento lúdico, adulto e inteligente da televisão portuguesa? Talvez seja por Marco Martins não gostar de TV que Sara — coisa nada cínica; foi evidente o espectáculo de sintonia de toda uma equipa — é uma fogueira onde, no território do audiovisual, se queimam fragmentos de Velvet Underground ou Pasolini, Beyoncé, Led Zeppelin ou Strindberg e Sarah Kane. Uma orgia do fim dos tempos.

Cinema, teatro, publicidade — e agora televisão. Há uma narrativa?
Isso é difícil para as pessoas à minha volta. A minha agenda é compartimentada:  “Não pode ser hoje, tem de ser amanhã.” “Amanhã já não posso... estou a fazer outra coisa.” A publicidade são projectos contidos no tempo — entre a preparação, a rodagem e o filme ir para o ar passa um mês e tudo é feito com uma equipa que trabalha comigo há anos. É um trabalho partilhado, funciono como chefe de orquestra. Há muitos recursos disponíveis e essa abundância, que não existe nem no teatro nem no cinema, é a graça da publicidade. Gosto da ideia de resolver um problema de alguém: uma campanha corresponde à vontade de uma marca, trata-se de vender um desejo, uma ideia, um conceito. Existe uma relação de confiança que permite uma liberdade bastante grande.

Quando passa da abundância da publicidade para o confronto com vidas precárias, como aconteceu com o projecto Provisional Figures: Great Yarmouth [peça com um grupo de imigrantes portugueses no coração da indústria de transformação alimentar britânica], há um curto-circuito?
A palavra “material” pode parecer desajustada, mas de facto é trabalhar com um material com características diferentes — na resistência, no tempo que se demora a trabalhá-lo. Great Yarmouth, pela sua longevidade, é um projecto de grande violência emocional. Mas não posso dizer: a publicidade é um intervalo. Não, é um compartimento.

Que necessidades ela satisfaz?
Desde logo há um lado financeiro que me permite grande liberdade. Antes de ter financiamento para Great Yarmouth eu já estava a trabalhar em Inglaterra. Depois, gosto muito desse lado de começar e acabar algo que é curto e com um objectivo precioso e que desencadeia uma reacção imediata. No cinema estamos a trabalhar anos num filme e não temos reacção a esse trabalho.

O que me permite fazer tudo isto é o facto de ter estruturas separadas. Tendo a fazer os filmes fora do Ministério, a minha produtora, que é feita a pensar em publicidade. A minha produtora de teatro, Arena, funciona por ela própria. E os filmes tendo a fazê-los externamente, e tenho variado.

É importante que as coisas permaneçam estanques. Mas o que é que contamina o quê?
Venho do cinema. Em última análise é aquilo a que respondo mais, é a minha linguagem. Penso em filme, não penso em teatro ou em publicidade. Não sou um publicitário em cinema. Trata-se mesmo de me livrar no cinema daquilo de que não gosto na publicidade. Mesmo na publicidade sou atípico. Se calhar a publicidade é que é contaminada pela minha formação cinematográfica, o contrário já não.

O teatro para mim é a zona de maior experimentação. O que me interessa são os actores, é a linguagem. O meu cinema não se constrói em cima da palavra, a palavra é utilitária. O teatro é difícil fazê-lo sem palavra, é uma zona onde a posso explorar. E é um lugar hoje de cruzamentos de linguagens, e são essas fronteiras que me apetece explorar. Mas aí o cinema e o teatro entroncam-se: o cruzamento entre a ficção e a realidade, entre o documental e o não documental. É o que me apetece fazer neste momento.

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Miguel Manso

Até porque foi por causa de teatro que redireccionou o seu cinema...
Sim, o projecto Estaleiros [em Viana do Castelo, 2012] permitiu-me começar a trabalhar com não actores, a construir um texto dramático baseado em testemunhos pessoais. Isso interessa-me muito no teatro. E a possibilidade de alteração de registos dentro do mesmo espectáculo, não só a ficção e não ficção, falo de registos estéticos, experimentação com o corpo do actor e com o espaço cénico. Por exemplo, a próxima peça, com a Beatriz [Batarda] e o Romeu [Runa], é um texto sobre a figura do pai que estamos os três a construir, e que cruza testemunhos pessoais deles com outros textos, Kafka por exemplo.

O pai era uma matéria que se adensava nos episódios finais de Sara.
Sempre trabalhei sobre a família. E há uma altura em que começamos a olhar para nós. Queria fazer um texto sobre a descendência. Nas primeiras residências a figura do pai começou a ser obsessiva. Também sou pai, três crianças, e há uma mudança. Começámos a falar sobre a família, pai, mãe e irmão, a peça começou a ficar mais sobre o pai. Quer para a Beatriz, quer para o Romeu, é uma figura marcante nas suas personalidades. O que fazemos com os afectos que nos dão? Às vezes deixam-nos um monte de pedras, às vezes um castelo. Como construímos a partir daí a nossa personalidade? A família é algo a que não se pode fugir, está presente na nossa construção enquanto indivíduos. Ser pai é algo de distinto da maternidade, o laço biológico é diferente, o papel social que se atribui ao pai e à mãe também — interessa-me isso.

Sara, então. Mesmo não sendo espectador de séries...
Também não...

... e desconfiando do cliché segundo o qual “o bom cinema está na televisão”, há que reconhecer um feitiço televisivo neste momento. Uma das coisas que se sente é que o realizador de Sara não gosta de televisão. Quanto maior é esse desgosto, tanto melhor a série. Há um lado apocalíptico. Os genéricos iniciais e finais são fogueiras de citações, de Pasolini a Ibsen, passando por Strindberg ou Sarah Kane, e fragmentos de canções, de Murray Perahia a Velvet Underground, de Gloria Gaynor a Rodrigo Amarante...
... a montagem prolongou-se no tempo, a rodagem não, e, aquela, sim, foi contaminada pelo que andava a ler e a fazer. Essas citações de teatro não estavam previstas, eram coisas que andava a ler ou a fazer — foram seis meses de montagem...

Para além dos genéricos, dentro dos episódios há uma vampirização de canções e livros de outros autores, B Fachada e Valter Hugo Mãe. Como a música dos genéricos é matraqueante, parece que fomos bombardeados por fragmentos de um mundo que já não existe — uma ideia e uma prática de cultura, por exemplo. Alguém tem um cartaz de um filme de Buñuel no quarto. Isso já não serve de nada, é irrisório.
Está absolutamente certo. Nunca quis fazer televisão, nem sou espectador de séries. Vi o início de Os Sopranos... mas nunca quis passar o meu tempo assim, acho que estou a perder a oportunidade de ver um filme. Porque há filmes de que não me lembro bem...

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PROVISIONAL FIGURES: GREAT YARMOUTH Depois de dois anos a trabalhar com um grupo de imigrantes portugueses que trabalham no coração da indústria de transformação alimentar britânica, depois de erguer os factos, Marco Martins trabalha na reflexão e na síntese: um filme JAMES BASS PHOTOGRAPHY

... os filmes são sempre outros...
... são sempre outros. Revê-los é sempre um novo filme — aconteceu-me com os Mizoguchis... eram outros filmes.

A ideia de fazer uma série nunca esteve presente. Até porque o meio, pelo que vai saindo em termos de produção, é muito pobre — espreito quando há actores de que gosto ou um amigo, mas vejo pouco, cinco ou dez minutos e chega.

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JAMES BASS PHOTOGRAPHY

A ideia passou a estar no horizonte no momento em que se tratou de uma série sobre televisão e se tratou de trabalhar com a Beatriz numa forma quase de longa-metragem: construir à volta dela, alguém com quem trabalho há muitos anos, mas com quem nunca tinha feito esse tipo de trabalho, porque os meus protagonistas tendem a ser masculinos — As Criadas (2017) do Genet era teatro. Trabalhar com a Beatriz numa reflexão sobre o meio, sobre a representação, sobre as escolhas de uma mulher de 45 anos agradava-me.

No início, havia um lado meio pop a funcionar como alter ego, o formato mais leve. O trabalho era até mais partilhado, a escrita era feita com o Bruno [Nogueira] e com o Ricardo [Adolfo]. Mas as coisas ganharam densidade, é a gravidade de que falou. São as escolhas que se colocam àquela mulher. Nunca tinha trabalhado em comédia ou tragicomédia. Demorei a aperceber-me do peso que isso continha.

A minha opinião sobre o meio está lá, não queria acrescentar muito. O que aconteceu à série é um reflexo desse meio: foi sendo adiada. Ficou pronta um ano antes de se estrear.

A RTP ficou incomodada?
Ninguém me disse directamente, houve várias desculpas para ser sempre adiada. Ou porque não havia dinheiro para pagar — as séries são pagas quando são emitidas —, ou outra coisa qualquer. Mas a verdade é que se estreava tudo e aquilo ficava na prateleira. Foi Teresa Paixão [directora de programas da RTP2] que gostou muito e que disse que não fazia sentido aquilo estar parado. E mesmo assim foi para o segundo canal, o que não era condizente com um investimento daqueles. Não custou muito mais do que as outras séries: 55 mil euros por episódio. Mas na altura havia um interesse, quando o Nuno Artur Silva [administrador com a área dos conteúdos] me chamou e ao Bruno. Havia um interesse que fosse um primeiro passo para mais coisas.

Nuno Artur Silva sai [no início do ano] e a nova situação não reconhece, é isso?
Rapidamente Sara ficou num limbo, nem a antiga direcção a conseguiu introduzir na programação. Em última análise, a paixão que tínhamos não era partilhada. Isso é um reflexo do meio, um meio pobre e que se rege por uma ideologia que não consigo qualificar. Por exemplo, segundo a RTP, numa série contemporânea não podia haver personagens que expressassem opiniões políticas ou pertencessem a partidos políticos... ou ainda os palavrões... Foram constrangimentos que não respeitámos. É difícil fazer ficção adulta assim. Que tipo de pessoas são as personagens? Deixaram-nos fazer tudo, mas o resultado é que nunca mais ia para o ar.

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MARCO MARTINS Como é que um homem que lida com a abundância da publicidade é capaz de empatia com as vidas precárias, como em Provisional Figures: Great Yarmouth? E como é que um tipo que não aprecia televisão faz Sara, retrato de uma actriz em crise de lágrimas que durante oito semanas foi o acontecimento lúdico, adulto e inteligente de toda a televisão portuguesa?

Há um momento em que a banda sonora, tal como as citações, passam a ser acontecimentos, como quando se espera uma participação especial: fica-se à espera para se confirmar o que ouvimos, como se se confirmasse um actor.
Se calhar as citações são a narrativa da série. E sobre a banda sonora: os adiamentos constantes da série fizeram com que tivesse um tempo de montagem enorme: em permanência três montadores durante oito meses. Isto só acontece nas longas, mas mesmo aí é diferente. Estar durante um ano a montar São Jorge [2016] é um processo que se envenena a si próprio, nunca se sai dali. Aqui fui fazendo coisas, peças, fui para Inglaterra, e quando voltava havia aquela coisa maravilhosa de vir de fora.

A série tem isso, o olhar de um corpo que se distancia de si.
A série teve muitas montagens não para corrigir algo, mas pelas visões que fomos tendo. Isso fez com que tivesse um ritmo e uma consistência particulares.

Em relação à música, uma coisa que faço quando começo um processo, peça, filme, é construir uma playlist. Às vezes é só a letra que me interessa, outras vezes, raramente, é uma música que quero usar. Aqui tinha uma vantagem: a dada altura a nossa directora de produção disse-nos, sobre os direitos autorais, que devido a um acordo da RTP com a SPA podíamos usar o que quiséssemos, eles pagam anualmente, desde que não seja música do genérico e que não apareça duas vezes. Pela primeira vez na vida tive a oportunidade...

... de ser DJ...
[risos]. Por isso agora estamos com problemas com a edição em DVD, porque aqueles direitos só cobrem a emissão na televisão. Aquela dieta de Beatles e Velvet Underground talvez não seja exactamente assim, mas tentaremos manter o máximo possível. O nosso cinema não vem daí, dos filmes do Paul Thomas Anderson, por exemplo, ou dos Coen, para falar em filmes que estudámos. Mas parecia-me possível de reproduzir no universo português. Em relação à banda sonora composta pelo [Nuno] Malo, cheguei à conclusão de que o que funcionava era essa coisa da música usada numa função clássica, de coro grego, e em muitas situações dizendo coisas diferentes do que estávamos a ver, colocando o espectador num sítio instável.

Essa instabilidade é testada também com a utilização de canções de B Fachada, que se conhecem, como sendo da “autoria” de uma personagem, interpretada por Tónan Quito. O mesmo em relação aos textos de Valter Hugo Mãe, que na série são escritos pela personagem do pai de Sara. Estas colagens são testes à adesão do espectador.
A personagem do cantautor foi logo escrita assim, um cantautor desta nova tradição portuguesa que escrevia canções de amor e que não era o tipo que interessava à Sara. Paraceu-me evidente que não nos íamos pôr a escrever canções e que tinha de ir buscar canções de alguém. Falámos com o B Fachada, propusemos que ele fizesse um cameo, uma personagem baseada nele, ele não quis...

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SARA Sara e o seu agente, Beatriz Batarda e Albano Jerónimo, ele como alter ego dela, a interpretação de Albano como a sua interpretação de Beatriz
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... ainda bem. Nada contra B Fachada, mas este “duplo” torna a coisa mais interessante. Aliás, essas apropriações contribuem para o mundo em chamas de Sara.
É toda uma história essa coisa dos acidentes de percurso. Esse foi mesmo um happy mistake. Ele não quis, o Tónan começou a ensaiar, tem uma voz completamente distinta — o B Fachada tem afinações dificílimas — e isso confere à personagem uma fragilidade e um lado cómico que não estava na escrita.

E foi assim também com o Valter Hugo Mãe. O pai [de Sara] era escritor, era um contraponto importante ele falar sobre a morte, aspectos metafísicos de que não se fala directamente na série, mas que começam a desempenhar um papel maior — como contraponto à comédia e como história anterior da Sara.

Não nos ocorreu escrever um texto literário, e com tanta literatura fomos à procura de um livro que nos interessasse.

Sobre Beatriz Batarda: mesmo tendo em conta como foi impressionante em Noite Escura (2004), de João Canijo, há momentos em que o processo por que a personagem passa parece agressão da actriz ao seu corpo e à sua estabilidade, e isso lembra-me A Caixa (1994), de Oliveira...
Foi um dos nossos primeiros filmes, dela [como actriz] e meu [como estagiário].

Curioso... Dito isto, a surpresa é Albano Jerónimo — que parece um sósia do Justin Theroux de Mulholland Drive de Lynch — pelo júbilo, pela loucura. É a sensação que gera a série: a alegria, a sintonia, todos a caminhar para a mesma direcção.
Tinha trabalhado só uma vez com o Albano, no meu segundo filme [Como Desenhar Um Círculo Perfeito, 2009], num pequeno papel, era o namorado da Beatriz. Depois foi cortado. Mas vou começar pela Beatriz: não tenho dificuldades em ver que é o trabalho mais fascinante dela. É uma actriz diferente da do Quaresma [José Álvaro Morais, 2003], há uma transformação do corpo e da pessoa. É um papel de grande exposição, não tanto pela proximidade da Sara da Beatriz...

... há piscadelas de olho, para forçar essa fusão...
Sim, um nome, Moreno, por exemplo, é comum às duas... Fizemos muitas entrevistas com a Beatriz, sobre as questões que se colocam a uma actriz daquela idade. Somos amigos desde crianças, mas é diferente fazer um trabalho a partir daquela pessoa, do zero, como se não a conhecesse — porque há coisas que nunca lhe tinha perguntado. É um papel de grande exposição. Primeiro porque nunca tinha feito televisão e porque aparece num registo que nunca experimentara, ou seja, tanto eu como ela não era suposto estarmos ali. Há um risco assumido pelos dois, de grande cumplicidade.

A Beatriz tem uma série de registos que nunca desenvolveu, porque as pessoas tendem a ser postas em compartimentos. A Beatriz é maior do que qualquer compartimento. Aquele corpo, aquela transformação, nunca se viu na TV portuguesa. Sendo a série uma reflexão sobre a representação, vamos pôr uma mulher de 40/50 anos, sem maquilhagem, a acordar na cama, como uma base zero a evoluir para outros registos.

Hoje, reflectindo sobre a série, há uma coisa simples e feliz: passo a vida como encenador ou realizador a tentar descobrir outras realidades, o desconhecido, mas era a primeira vez que estávamos a falar sobre nós. Falamos sempre sobre nós noutras personagens e realidades, mas a liberdade de falar sobre o que somos é maior: sabemos quando estamos a transgredir, sabemos quando estamos a ser factuais.

A Beatriz, por estar num projecto que era meu e do Bruno, sentiu-se segura para experimentar.

Há um lado caleidoscópico em Sara, é essa a memória essencial da série.
Por outro lado, aqueles risos que a Beatriz faz... sobretudo nas cenas com o agente — ela já conhecia o Albano Jerónimo, já o tinha encenado, aliás — são de grande exposição. Quando falamos de nós próprios através de uma interposta pessoa, mas em que a realidade de que falamos está próxima, há um lado de catarse. Isso está presente para ela e para mim. Não por acaso as cenas que mais gostava de fazer eram as de novela...

... como se se confrontasse consigo próprio, se se risse de si próprio...
... sim, sim.

A personagem do agente foi escrita em várias fases. No início era um hipster, que queria transformar a Sara em actriz de novela e olhava para o dinheiro mais do que para qualquer outro lado. Mas não tinha interesse e começámos a pensar nele como um alter ego. O Albano é um actor de que gosto muito, mas quem se lembrou dele foi o Bruno. A personagem estava escrita, mas a composição é dele. Foi ele que levou a personagem para aquela intensidade, aquela precisão de representação. Tenho de dizer que aquilo era a interpretação dele da Beatriz.

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Miguel Manso

Estou a lembrar-me do episódio no lar, quando irrompe a coreografia, momento lunático... Estava escrito?
Estava escrito que ele estava no lar. E depois a última cena é daquelas coisas que escrevo e que é para improvisação. Linhas em que uma pessoa lê e pensa logo: “Só isto aqui é um dia de rodagem.” Estava assim: “Eles dançam.” E depois: “Há uma aula de Sara com os idosos do lar.” O assistente de realização já sabe que era um dia ali.

A duração dos episódios... não são os 50 minutos da praxe, nem os 25 de uma sitcom, varia entre 30/40 minutos, marca dessa forma o ritmo biológico da série. Começamos a sentir esse batimento, a respirar com esse ritmo.
Boa questão. Os guiões tinham durações diferentes, e na negociação com a RTP interessava-me que não tivessem uma duração certa. Muito do trabalho de montagem foi para encontrar esse ritmo biológico. Passei dois meses a montar o primeiro e o segundo episódios só para descobrir como. Não foi imediato.

E sobre Great Yarmouth: a ideia de um filme fazia parte do projecto.
Sim, pela primeira vez juntar uma coisa à outra.

Mas com tanto investimento, dois anos, para chegar ao palco, como é que ainda consegue imaginar algo num material que já tratava por tu?
Vai ser diferente. O sítio é o mesmo, as pessoas as mesmas, mas o filme permite fazer uma cristalização daquela realidade, tornar visível o que é invisível para quem não conhece aquela realidade. A manipulação daquele material, que é muito rico, permitirá com o filme uma reflexão maior. É como se a peça erguesse os factos, os depoimentos, e o filme permitisse uma reflexão sobre aquele sítio, sobre o que está ali em jogo.

Como no filme São Jorge, a ficção é forma de elevar o real...
Sim, a mentira diz uma verdade maior. Temos de construir uma narrativa sobre aquele real para aquele real existir realmente. Isso ainda não está feito. Neste momento tenho uma mistura de actores e personagens, mas a maior parte do elenco serão actores, a Beatriz, o Nuno [Lopes], o Romeu, e vou ter muitos não actores, ingleses e portuguesas que vivem lá, a comunidade portuguesa que resta, em pequenos papéis.

Tentei passar no espectáculo a dureza que é um trabalho naquela fábrica. Criámos uma forma de representação da dureza, mas há coisas que o filme permite — a não ser o cheio terrível a sangue e excrementos — que o teatro não dá. Mas a dureza dos animais abertos, do tirar tripas o dia todo, a relação disso com a transformação dos corpos e com a sociedade, isso é algo que o filme vai permitir de uma forma muito distinta. Tenho de fechar este capítulo.

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