Na mesma semana em que estreava nos cinemas mais um extraordinário descalabro estético e comercial do António Lopes Ribeiro do regime democrático (e em que era tornado público que, um mês antes, o Instituto de Cinema já tinha mais um generoso subsídio público para mais um filme da sua lavra), soube-se do encerramento próximo do cinema Monumental, em Lisboa. Um descalabro nunca vem só...
E na mesma noite em que “as mais altas individualidades da Nação” se reuniam na antestreia desse descalabro de filme, aquele que foi secretário do audiovisual (do governo) de Cavaco Silva e inspirador e homem de mão do nunca por demais celebrado FICA, da política de cinema da troika e da privatização do Instituto de Cinema a bem das operadoras e dos canais privados de televisão (que reunia em grandes patuscadas para concertar os júris desse instituto), podia assim regozijar-se duplamente: mais um “subsídio” para si próprio, menos um grande cinema para o Cinema.
Estreado com mais uma notável campanha de lançamento em 60 salas de todo o país, o filme [Parque Mayer, de António Pedro Vasconcelos] pouco passará dos 30 mil espectadores — ligeiramente abaixo, portanto, dos 600 mil dos remakes das comédias salazaristas —, arrastando-se por sessões em que a média de frequência pouco passará da dúzia. Aliás, há mais de uma dúzia de anos — desde o soft-porno Call Girl — que nenhum dos seus filmes chega sequer aos 100 mil incautos, tendo o anterior ficado mesmo por uns míseros 36 mil, à razão de 15 por sessão...
O que para o caso pouco interessa, porque o que interessa é que antes mesmo de ter estreado este belo filme, ele tinha já mais um atribuído, numa incansável apropriação dos fundos de um Instituto de que tanto desdenha, mas de que afinal tão bem se aproveita. Mas passemos à frente e falemos de coisas e pessoas sérias.
Fez há pouco 25 anos que abriu em Lisboa uma sala que, depois dos incontáveis encerramentos de salas na capital e um pouco por todo o país, veio revolucionar a exibição em Portugal. Porque depois de o país ter assistido impávido e sereno ao sucessivo encerramento de todas as grandes salas durante os anos 80 — num imparável movimento de especulação imobiliária que forçava os espectadores à frequência de centros comerciais — tudo o que tinha entretanto aberto eram salas sem grande préstimo. Depois do King e de algumas outras experiências com tanto de inesperado como de bem sucedido, nascia um grande cinema onde pela primeira vez — dez anos depois do “resto do mundo” — havia som digital e uma extraordinária projecção e que iria impor um grau de exigência máxima aos restantes cinemas. E que, sobretudo, não tinha medo de estrear Kiarostami ao lado do Parque Jurássico de Spielberg... entre tantas outras coisas que fizeram dele um dos casos de maior sucesso da exibição cinematográfica.
Hoje, 25 anos passados, pode dizer-se que o estado a que esse cinema chegou é também ele jurássico. Mas no dia em que fechar — dentro de pouco mais de dois meses? — em Lisboa, capital de um país europeu, sobrarão sete cinemas em centros comerciais e dois cinemas “de rua”... Quase tantos cinemas como os de um pequeno bairro de uma cidade qualquer. E Lisboa não é, não pode ser, uma cidade qualquer.
Seria trágico e deprimente, não se dera o caso de ser esse o retrato mais cruel e autêntico do estado do Cinema em Portugal. Um país em que na segunda década do século XXI ainda se põem em causa os apoios à Cultura e em particular ao Cinema — e a taxação das empresas que exploram um bem público escasso e a quem nunca foram impostas obrigações —, quando o orçamento do seu Instituto não chegaria sequer para pagar o custo de dois filmes médios na Europa. Um país de cujo Serviço Público de Televisão o Cinema foi sendo expulso e em que a empresa que o executa dedica 3% — e não 30 — do seu orçamento à RTP2, preocupado que está na alta qualificação dos cidadãos em futebol e cantigas. Um país em que os cidadãos vão uma vez e meia por ano ao cinema — 15 milhões de espectadores, é o que temos — e em que um quarto dos que o fazem nem sequer pagam bilhete (bilhete que é oferecido pela empresa de telecomunicações que também gere mais de metade dos cinemas e dos filmes estreados, num sinal de notória e saudável concorrência). Um país em que todas as semanas nasce mais um festival de cinema, mas em cuja “província” não há salas, e em que os poucos cineclubes que temerariamente sobrevivem são tratados como mendigos. Um país de orgulhosos assinantes de netflixes e que se compraz com séries de televisão inanes e que sobre o cinema vomita superioridades de analfabeto contentinho. Um país cuja Cinemateca é forçada a andar de mão estendida, mas a quem toda a gente tece as loas do que desconhece. Um país em que o órgão de aconselhamento da tutela sobre o Cinema é uma sinistra câmara corporativa herdada do salazarismo mental mais rasca. Um país que ano após ano assiste embaraçado ao sucesso internacional dos seus cineastas, jovens e menos jovens.
É um país em que o Cinema não tem futuro.
Uma coisa porém é certa: o filme do António Lopes Ribeiro do regime democrático será rapidamente esquecido, como todos os seus outros filmes. E filmes como o que tem “um homem fechado num elevador” — esse [Cavalo Dinheiro], que foi premiado e circula um pouco por todo o mundo — continuarão a ser vistos por muitos e longos anos.
E já agora, que ninguém nos ouve: não foi para perpetuar a política para o Cinema da troika e da Direita que o país escolheu um governo à Esquerda (à atenção do senhor primeiro-ministro, da senhora ministra da Cultura... e do BE), pois não?...
*Pedro Borges dedica-se há quase 40 anos ao cinema. Exibidor e distribuidor, assistiu à abertura de alguns cinemas e ao fecho de outros tantos