A grande emissão da propaganda portuguesa e o que dela resta hoje
Companhia de Coimbra O Teatrão leva ao palco a máquina de fabricar narrativas do Estado Novo. Para "desmontar a ideia de que antigamente é que era bom".
O programa de rádio dura hora e meia. Esperem-se o mais recente bloco noticioso, números musicais, teatro radiofónico e um correio sentimental. Esperem-se moralidade, civilidade, a pregação dos bons costumes e a exaltação da portugalidade pela antena da Emissora Nacional.
Na verdade, espere-se mais do que isso: que A Grande Emissão do Mundo Português coloque em perspectiva a narrativa em que o próprio título se inspira. O novo espectáculo da companhia O Teatrão parte da aparente romantização do universo da radiofonia de meados do século passado para voltar a uma época sombria da história portuguesa e encontrar nela os pontos de contacto com a actualidade.
A construção de A Grande Emissão do Mundo Português, que se estreia esta sexta-feira na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, e fica em cena até 20 de Janeiro, tem como base a rádio, instrumento “muito eficaz na transmissão da ideologia com a qual se queria transformar o país” durante o Estado Novo, afirma Isabel Craveiro, que dirige a peça, criada com os restantes quatro actores.
Uma eficácia comprovável pela longevidade que a propaganda alcançou, sustenta. Dos actuais produtos nostálgicos destinados ao turismo até ao Galo de Barcelos, “que continua a ser o símbolo nacional maior”, à “ideia da ruralidade, do regresso ao campo” e à mitificação do carácter pacífico do país, “que às vezes não corresponde muito à realidade”. Nessa operação, António Ferro, que simboliza a operação de propaganda do Estado Novo e que também aparece representado na peça, desempenhou um papel central.
Aos microfones da Emissora Nacional, os cinco actores retratam a progressão de um projecto no decurso do qual a alegria no trabalho inicialmente anunciada vai esmorecendo até se desintegrar. “Há pormenores que nos vão fazer confrontar com uma história que não é bem esta, cheia de contradições, cheia de resistência, e que obviamente não passava nas notícias”, diz Isabel Craveiro. No fundo, prossegue, o objectivo é "desmontar a ideia de que antigamente é que era bom".
O primeiro número musical de A Grande Emissão... é uma marcha sobre as virtudes do trabalho, originalmente registada pelo coro e orquestra da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (a FNAT, organismo que antecedeu o actual INATEL). Historicamente, as mesmas vozes acompanhariam a marcha Angola é nossa, amplamente difundida na década de 1960 pela Emissora Nacional. E é aqui que se pode fazer um primeiro paralelismo com o momento actual: até que ponto os mecanismos de propaganda de hoje não são uma actualização tecnológica dos de ontem?
Há também a moralidade puritana. A chegada ao correio sentimental atira novamente a peça para os dias de hoje. Apesar de as respostas da locutora serem formuladas com linguagem anacrónica, as dúvidas têm por base questões actuais, da cirurgia plástica ao Tinder.
A tabacaria à entrada da Oficina Municipal do Teatro, onde está instalado o café do edifício, foi transformada nas instalações da Emissora Nacional, e é nesse estúdio que a plateia se instala. O cenário é todo forrado a uma estética que remete para a casa portuguesa: luz baixa e cartazes de época, como um mapa do império em que são exibidas as várias regiões de um país colonial, da metrópole às ilhas, não esquecendo as “regiões ultramarinas”.
Também esses adereços políticos são desconstruídos, refere Isabel Craveiro. O cartaz da alegria no trabalho passa a remeter para o life-coaching e a propaganda colonial transforma-se numa “provocação” ao controverso Museu das Descobertas.
Com A Grande Emissão do Mundo Português, O Teatrão encerra as portas da Casa Portuguesa, um conjunto de produções sobre o período do Estado Novo que incluiu a peça Eu, Salazar, com texto de Nuno Camarneiro e encenação de Ricardo Vaz Trindade. Desse trabalho saiu ainda um documentário, que se estreará a 20 de Janeiro.
No próximo ano, O Teatrão muda-se para nova morada temática: “a Casa Revolta”, explica Isabel Craveiro. Assinalando os seus 25 anos, a companhia vai dedicar-se à relação com o poder, aproveitando a aproximação a um novo ciclo eleitoral para levar a cena Ricardo III, de Shakespeare, e o texto Ala de Criados, do dramaturgo argentino Mauricio Kartun.