Eu, Salazar. O homem, a história e a ficção sob os ecos da revolução
A peça de O Teatrão não quer julgar a figura, mas também não o procura normalizar. Ricardo Vaz Trindade e Nuno Camarneiro dão-lhe as lentes da primeira geração pós-25 de Abril.
O actor entra em cena, pousa a mochila e vai despindo a roupa casual, enquanto vai relatando memórias enevoadas de uma infância, num texto habitado por pontas inicialmente desconexas que mesclam comemorações do 25 de Abril, Cavaco Silva como primeiro-ministro ou palavras de ordem da CGTP. Em simultâneo, vai vestindo as peças cinzentas de um fato datado, a camisa branca e a gravata preta.
O fato pretende emular as vestes da figura que mais marcou o século XX português. O actor é Ricardo Vaz Trindade, que interpreta o papel do ditador na peça Eu, Salazar, da companhia O Teatrão, que estreia hoje na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra.
Para além do papel central, Vaz Trindade assume também a encenação e divide a autoria do texto com Nuno Camarneiro (Prémio Leya 2012). O resultado final é uma tentativa de ponto de equilíbrio: “Não queríamos fazer uma peça de julgamento sobre o homem, também não o queríamos normalizar; não queríamos ser panfletários, nem elogiá-lo”. O encenador assume que a linha que percorrem é “um bocado fina”. Soma-se um exercício entre a história e a ficção, que se nota nos momentos difusos, em que as história recolhidas e pessoais dos quatro actores se misturam com a história que vem nos livros e com fragmentos de discursos do homem que dirigiu o país durante grande parte do Estado Novo.
Os dois autores do texto nasceram nos anos da ressaca da revolução e é esse ângulo que assumem: de alguém que não viveu durante o Estado Novo, mas que “ainda apanhou os ecos e as ondas de choque fortes”, refere o Vaz Trindade. “Aquilo que foi o Estado Novo, o 25 de Abril e a guerra colonial chegou-nos de uma forma muito vincada”, completa Camarneiro. E polarizada, seja para um lado, seja para o outro.
O ponto de partida para a peça foi a leitura da biografia de António Oliveira Salazar, da autoria de Filipe Ribeiro de Meneses (Dom Quixote, 2009), explica o actor. No livro há um episódio em que o Salazar vela a mãe doente e moribunda. “Achei que aquilo dava um bom monólogo”, conta, “por achar que seria um espaço diferente”. Diferente por ser um momento de vulnerabilidade “para um homem cheio de certezas, [um momento para] expor as suas próprias dúvidas, os seus medos”.
O convite de O Teatrão para tratar o tema fez com que a peça ganhasse um corpo diferente e se estendesse a quatro actores. Nuno Camarneiro assume o objectivo de que fosse o “lado pessoal a guiar”, num exercício necessariamente de ficção. Isto porque, apesar dos extensos e variados escritos deixados por Salazar, sabe-se pouco sobre o seu lado mais pessoal. E muito do que se sabe, sustenta Vaz Trindade, faz parte da imagem que o próprio ajudou a construir.
Ainda assim, acrescenta Camarneiro, a acção política “teria que figurar”, acompanhada por uma estética de portugalidade que nos remete para os cerca de quarenta anos que esteve no poder, entre a simplicidade de uma casa portuguesa e um estendal de roupa branca. As referências ao real coexistem com episódios com ares de film noir, de piano a pautar a narrativa e o fumo do cigarro a intervalar os gestos. Já perto do final do espectáculo, o actor despe o blazer de seis botões, bem como o restante fato cinzento, e regressa à roupa inicial. De seguida desaparece na penumbra.
A peça da companhia de Coimbra foi assessorada por uma equipa de quatro historiadores composta por Joana Brites, Luís Reis Torgal, Miguel Bandeira Jerónimo, Rui Bebiano, sendo que a estreia é acompanhada pela primeira de um ciclo de mesas redondas relacionadas com o tema. A primeira tem o tema “O Portugal do Estado Novo”, seguindo-se “Arte, Tradição e Modernidade” no dia 5 de Maio e “Oposições e Resistências” no dia 12 do mesmo mês. Eu, Salazar, está na OMT até 13 de Maio, o mesmo dia em que se realiza a mesa-redonda “Salazar, O homem e o mito”.